«Em cada momento histórico move-se um pêndulo que rege os acontecimentos, e
tanto a sua parte fixa como a móvel constituem uma máquina maravilhosa, que não
deixa nem deixará de ser uma máquina que marca o ritmo da mecânica histórica,
os latidos de um coração que vive, que acelera e desacelera, que sofre às vezes
taquicardias; que um dia nasceu e que acabará por morrer. (…)
Contra este ritmo universal nada podem
as nossas disquisições intelectuais. É como é, e a única coisa que podemos
fazer é percebê-lo ou não.
Quem não o percebe, não merece regra
geral o epíteto de filósofo, pois
fica-se pela superfície dos acontecimentos sem se incomodar em verificar as
suas causas profundas. A alienação, que perturba a razão e a percepção, deixa-os no
aparente paradoxo da existência crendo que o seu tempo – o que eles vivem – é
único, que o progresso é constante e linear. Mas a História (…) é cíclica e responde a motores ocultos que se
desvelam somente àqueles que neles meditam profundamente.»
Jorge Angel Livraga[1]
No nosso mundo acelerado, em
constante mutação, anestesiado pelo excesso de informação e aletergado pela
faceta maiávica, ilusória, da tecnologia transformado em finalidades e não em
meios que enriqueçam o Ser Humano, ocorrem uma série de fenómenos, muitas vezes
pouco visíveis a o olho nu, mas que merecem uma reflexão aturada de modo a
podermos ultrapassar a mediocridade das ideias feitas que alimentam o ar do
nosso tempo. Um desses fenómenos, invisível na confusão do nevoeiro da
actualidade, mas bem claro para quem tiver a coragem de meditar sem
pré-conceitos no processo de mutação da actualidade, é o «Regresso da
Filosofia». As formas mentais do velho paradigma já não respondem - nem iludem
a resposta – às questões do Homem do século XXI, colocado numa impressionante
charneira histórica: as formas religiosas tradicionais estão anquilosadas, a
crise política, económica e de valores é bem visível, há uma transição de Era
astrológica, Peixes para Aquário, o que solicita novas formas de
espiritualidade, e, concomitantemente, finaliza um ciclo de filosofia para dar
espaço do que poderemos talvez denominar uma Filosofia Natural de carácter
platónico – desenvolveremos este tema mais adiante. Neste tempo de profundas
mudanças, emerge a necessidade de verdadeiros filósofos que possam dar uma nova
luz sobre a catadupa vertiginosa dos acontecimentos que gera um desconcerto
natural para quem não capta os motores profundos que dão origem a esta
aceleração.
Alan Minc no seu trabalho A Nova Idade Média, publicada há mais de
uma década, assinala como o Ocidente, depois de 1989, não soube encontrar um
princípio fundador no período post-comunista. Quer dizer, esgotou-se o tempo e
a energia das formas mentais neo-racionalistas de carácter materializante-mecanicista
e, sem novos arquétipos a inspirar os centros de poder, entrou-se nos inícios
de um novo período medieval, ou seja, num tempo intermédio entre uma
civilização que cai por desgaste e perversão de valores e uma nova que surgirá
a partir das sementes que, entretanto, se plantarem.
A nosso ver, a História da
Humanidade é uma sucessão de civilizações com os seus períodos intermédios
entre cada uma delas. Um arquétipo transforma-se numa forma mental colectiva,
num Ideal, que de início é captado por um restrito grupo de filósofos. Estes
modelam as primeiras manifestações dessa Ideia,
surge a fase auroral, uma filosofia dá origem a uma cultura que, com o tempo,
se expande tornando-se uma civilização que atingirá o seu apogeu. A partir de
certo momento, a Ideia ou alma dessa
civilização começa a desencarnar, os humanos começam a desvincular-se dos
valores fundadores e essa forma civilizatória entra em decadência até se
desmoronar completamente. Este é um processo natural constatável através do
estudo do carácter cíclico da História e dos motores profundos que a regem,
dando especial enfoque ao ambiente mítico e psicológico de cada época.
O Ciclo da Filosofia Ocidental e a Catástrofe Metafísica do Ocidente
«A catástrofe de um racionalismo exagerado
começou com Aristóteles na corporização
das ideias e rebentou com Descartes, o qual se apoiou na dúvida e
circunscreveu a racionalidade do mundo a leis de sucessão mecânica, excluindo
toda a Finalidade Universal, negando os princípios platónicos. (…)
As linhas mestras do pensamento humano
diluem-se.»[2]
Jorge Angel Livraga
Estamos hoje no final de um ciclo
de aproximadamente três mil anos. Dentro do que a história nos permite
conhecer, descortinamos dois factos importantes que marcam os germes da ruptura
entre o Homem e a sacralidade da Natureza, ou seja, a visão tradicional da
vida. Por um lado, o judaísmo tornou-se uma religião histórica e não mitológica
e por outro, paralelamente, a invasão da Hélade pelos dórios marcou uma ruptura
com a Grécia tradicional da civilização micénica. Este último facto que
desencadeou o ciclo da filosofia
ocidental.
Jean-Pierre Vernant não hesitou
em afirmar: «A queda do poder micénico, a expansão dos dórios no Peloponeso, de
Creta a Rhodes, inauguram uma nova era da civilização grega. Uma distância
intransponível estabelece-se, então, entre os homens e os deuses.»[3] O
antropólogo Fernand Schwarz corrobora esta afirmação: «A invasão da Hélade
pelos dórios, entre os séculos XII e VIII a. C., provocou a desintegração das
crenças religiosas primitivas que o universo micénico soubera preservar,
mantendo um equilíbrio justo entre os poderes matriciais da Terra e o espírito
fecundante do Céu.»[4] Inicia-se um ciclo de
mutação profunda na mentalidade ocidental que vai conduzir à perda gradual da
compreensão das funções mítica e iniciática na sociedade humana. Neste quadro,
nasce a espantosa aventura da filosofia, iniciada na Grécia clássica dos
séculos VI eV a. C., mas que contém à nascença o germe desse fenómeno
surpreendente que Henry Corbin apelidou de catástrofe
metafísica do Ocidente. A razão diferencia-se, separa-se da religião e
empenha-se em construir uma visão científico-racional do mundo e da vida. Este
ciclo dura dois mil e quinhentos anos, durante os quais, por um efeito de cascata,
os sistemas filosóficos racionalistas se vão sucedendo até chegarmos aos
famosos positivismos e marxismos que enquadram mitologicamente (o homem não vive sem mitos) a sociedade actual.
A tensão criada entre Platão e
Aristóteles é, em nosso entender, da maior importância. O pai da Academia dá
prioridade ao Mundo das Ideias, ou seja, este é real, não sendo o mundo
sensível mais do que a sombra daquele. O homem, através da educação (Ginástica
para o corpo; Música – ciências e artes das musas – para a psykhé; e Dialéctica para o espírito, nous), deve ir-se libertando da caverna
do mundo sensível e ascender paulatinamente à beleza dos divinos arquétipos.
Esta ascensão é proporcionada pela reminiscência – a lembrança da alma. A
saudade como nostalgia do paraíso perdido é platónica. Platão é um filósofo da
síntese, enquanto Aristóteles, de início seu discípulo, é um filósofo da
análise, sendo verdadeiramente o pai da ciência moderna. O filósofo do Liceu
começa a investigar o mundo sensível, não aceita a necessidade da existência per se do Mundo das Ideias e corporiza-as, nascendo deste modo a
tensão entre Aristóteles e Platão. O discípulo de Sócrates incorpora a razão e
o mithos no seu sistema holístico,
enquanto Aristóteles se afasta do mito, dando a primazia à razão. Sabemos que,
de Aristóteles a Averroes, a Descartes, aos iluministas, a Auguste Comte, etc.,
vai uma grande distância em termos de profundidade filosófica. Para chegarmos a
essa conclusão, basta-nos ler a Ética a
Nicómaco, mas quando o filósofo do Liceu dá preponderância ao estudo da
Natureza baseado nas percepções que nos chegam com origem nos cinco sentidos em
detrimento da imaginação mítica (ou sem a incluir) e da experiência iniciática,
começa a limitar a percepção abrangente do Real. Para o pensamento de índole
aristotélica, a imaginação não um o órgão da alma que permite o acesso ao mundo
espiritual, como afirmou Giordano Bruno, mas simples fantasia construída a
partir das sensações recebidas do mundo exterior. Esta visão do mundo faz com
que o homem perca a sua interioridade, não estando consciente da sua
necessidade de se alimentar espiritualmente através da reminiscência
arquetípica. Aliás, o próprio estudo do mundo sensível, apadrinhado por
Aristóteles, demonstra hoje cabalmente que os cinco sentidos não são as únicas
portas para a percepção do real. O cientista português, Helder Bértolo,
realizou a sua tese de mestrado, na área da biofísica e da física médica, sobre
O Sonho e Imagem em
Invisuais. Chegou à conclusão de que não existe grande distinção
entre os sonhos de um cego de nascença e os de um normovisual, quer dizer, os
invisuais congénitos têm os seus sonhos com conteúdos visuais idênticos aos das
pessoas com o órgão da visão saudável. Quando um normovisual fecha os olhos
emergem as ondas alfa que tem no cérebro, mas se imaginar um objecto estas
bloqueiam e aparecem altas frequências. Este facto acontece também nos sonhos
dos cegos congénitos, ou seja, processam-se com imagens reais que o sentido da
visão nunca conseguiu captar por estar obstruído. Tivemos a oportunidade de
apreciar alguns desenhos efectuados por um dos invisuais congénitos que
aceitaram colaborar no estudo de Helder Bértolo. Nestes desenhos vêem-se
perfeitamente um barco, um gato, uma galinha, um moinho, montanhas, uma nuvem e
um Sol com os seus raios. Quanto a nós, este caso só tem uma explicação
satisfatória se aceitarmos a existência da imaginação
como órgão da alma, noutro plano que não o dos sentidos físicos, e também a
existência per se do inconsciente
colectivo, onde se encontra toda essa biblioteca de imagens e mitos à qual a
imaginação tem acesso.
Platão, iniciado nas escolas de
mistérios do Antigo Egipto, incorpora no seu sistema filosófico os grandes
pilares da sabedoria tradicional, tal como o reconhece Mircea Eliade: «Poderíamos
então dizer que esta ontologia ‘primitiva’ tem uma estrutura platónica, e
Platão poderia ser considerado neste caso como o filósofo por excelência da
‘mentalidade primitiva’, isto é, como o pensador que conseguiu valorizar
filosoficamente os modos de existência e de comportamento da humanidade
arcaica. Claro que a ‘originalidade’ do seu génio filosófico não fica de modo
nenhum diminuída; porque o grande mérito de Platão continua a ser o seu esforço
em justificar teoricamente essa visão da humanidade arcaica, através dos meios
dialécticos que a espiritualidade da sua época lhe podia fornecer.»[5]
A filosofia platónica influenciou
bastante o cristianismo nascente, nomeadamente através da Escola Neoplatónica
de Alexandria fundada por Amónio Saccas, no século II d. C.. Deste foco
luminoso de filosofia espiritual emergiram grande vultos da espiritualidade
como Plotino, Jâmblico, Proclo, Hipátia, etc., e inspiraram-se nele alguns dos
padres mais cultos da Igreja como Orígenes e Clemente de Alexandria. Fernando
Pessoa assevera mesmo: «O cristianismo, cuja base é o neo-platonismo de
Alexandria: pode dizer-se sem exagero que, no campo intelectual o fundador do
cristianismo foi Platão, assim como no campo social foi S. Paulo, ainda que
fosse o mesmo Cristo no campo divino (...)».[6] Mas,
no século XIII, segundo o pensamento de Henry Corbin, surge a primeira ruptura
que marca a catástrofe metafísica do Ocidente. Gilbert Durand, em franca
sintonia com este pensamento, sustenta que foi «o repúdio progressivo pela
escolástica peripatética [aristotélica] e averroísta da anamnésia platónica de
Escoto Erígena e de Dionísio, o Aeropagita, que marca bem o que Henry Corbin
chamou de a catástrofe metafísica do Ocidente».[7]
Na realidade, a escolástica
adopta o pensamento aristotélico veiculado por Averroes e separa a filosofia da
teologia, colocando esta ao serviço da ciência. A fé divorcia-se da razão, o
que é absolutamente oposto à sabedoria tradicional. Os teólogos racionalistas
da escolástica separam o conhecimento humano da revelação divina; agrava-se a
ruptura entre o sagrado e o profano. Quer isto dizer, em definitivo, que o
pensamento humano deixa de ter o direito de especular (tão pouco pode
compreender, tem é de ter fé) sobre as grandes questões da espiritualidade,
sendo forçado a obedecer coercivamente às directrizes da Igreja. Assim, essa
energia mental começa a dirigir-se para as questões do mundo sensível. Poucos
séculos depois, surge o cartesianismo, instaurando a dialéctica entre o
pensamento humano, inteligente, e a natureza morta, da qual o homem se deve
tornar possuidor e mestre. Entretanto Descartes, como crente que era, não
deixava de rezar à Virgem Maria.
Vem o iluminismo e com ele a
ciência está cada vez mais separada da religião, surgindo depois as doutrinas
materialistas do século XIX na sua forma mais redutora. Para os seguidores do
positivismo, a humanidade, que surgiu do Deus
Acaso, tem vindo a cumprir uma evolução linear. O homem pré-histórico, com
os seus totens e tabus, viveu na chamada etapa mágica da humanidade. Seguiu-se
um período ainda muito supersticioso mas já um pouco mais racional, a etapa
religiosa, com o alvorecer das civilizações da Ásia Menor. Com a Grécia nasce o
homem racional, desperto, e a humanidade alcança a importante etapa filosófica,
embora o conhecimento seja ainda subjectivo. Finalmente, no auge da evolução
humana surge a era científica, ou positiva.
Por outras palavras, a
humanidade, numa evolução linear, tinha acedido ao estado teológico de consciência, deste passara ao metafísico e, finalmente, chegara ao estado positivo. Para esta nova religião dessacralizada e materialista, –
que tem nos intelectuais racionalistas os seus sacerdotes – a humanidade,
graças ao desenvolvimento da ciência, viveria no final do século XX em pleno
paraíso na Terra. Lembremo-nos de que para o marxismo – naturalmente inspirado
na leitura positivista da realidade – a «religião é o ópio do povo», precisando
o homem para ser feliz simplesmente da libertação económica, ou seja, com os
problemas de natureza material resolvidos, seria naturalmente feliz. Esta visão
positivista da realidade é a forma mental que ainda hoje impera no Ocidente, ao
mesmo tempo que as religiões institucionalizadas vivem fossilizadas dentro das
suas formas mentais medievais.
É neste contexto que a
antropologia do imaginário e a história das religiões podem dar um contributo
importante à nova era que se avizinha. Tudo na Natureza nasce, cresce, tem o
seu período de maturidade, envelhece e morre. Tanto as civilizações humanas,
como as formas religiosas ou os movimentos filosóficos estão integrados na
Natureza e não podem fugir às suas leis. Segundo pensamos, as representações do
mundo criadas pelas ideologias são formas mentais que vivem na correspondente
esfera de vibração mental, fazendo parte da Natureza invisível e tendo o seu
lapso de tempo natural consoante a sua energia. Conhecemo-las como a
consciência ou alienação mental de cada época (ar do tempo segundo o jornalista José António Saraiva), na qual a
esmagadora maioria de seres humanos está mentalmente imersa e prisioneira.
Serão estas formas mentais uma criação humana ou serão antes os homens que, entrando
em consonância com estas formas de
natureza mental, desempenham a função de seus veículos no momento x da
espiral do tempo? Eis uma questão filosófica que valerá a pena meditarmos.
O Regresso da Filosofia Natural
«Afirmamos e afirmaremos sempre que o homem
que não consegue ver na Natureza, a expressão original, o grande depósito do
pensamento humano é intelectualmente um desesperado.»
Fernando Pessoa
Mas esgotado este ciclo como
neo-racionalismo e as formas teoréticas de filosofia, onde o afastamento do
pensamento humano à amplitude e leis da Natureza é, para nós, evidente, reemerge
o que poderemos denominar como filosofia natural de carácter platónico. Uma
atitude de procura do Saber meditando sobre as grandes questões do Homem, da
sociedade, da história, da ciência, com o fito de captar a mecânica interna da
Natureza e os motores mais profundos dos fenómenos e acontecimentos. O
reducionismo do Real à esfera do medível, do visível, do «científico», afastou
a filosofia da Realidade. O regresso a uma visão do mundo que inclua as
dimensões física, psíquica e espiritual da Natureza, como o fez Henry Corbin[8] e foi
aceite por muitos investigadores do movimento da Nova Antropologia, permite um
regresso da filosofia natural, ou seja, percepcionarmos que os fenómenos
psíquicos, mentais e espirituais, também estão sujeitos a leis naturais e que a
verdadeira filosofia é a procura destas leis fundamentais que regem o universo.
O regresso da filosofia assenta no novo paradigma que está a nascer permitindo
um novo contacto do pensamento humano com a mecânica interna da Natureza. A
nosso ver, o grande percursor desta atitude renovada da filosofia foi Jorge
Angel Livraga que, na segunda metade do século XX, propôs uma nova cosmovisão,
deixou reflexões filosóficas sobre uma miríade de temas e foi um exemplo para
os seus discípulos de como a filosofia pode ser transformadora e enriquecer a
vida interior dos humanos.
Se no ciclo da filosofia
ocidental que agora se esgotou o pensamento aristotélico ganhou a supremacia,
no regresso da filosofia o pensamento de Platão ganha uma renovada importância.
Platão relaciona claramente nos
seu diálogos o filósofo com o iniciado nos mistérios, aquele que acede
directamente à visão do mundo divino. Quer dizer, o filósofo não é somente o
amante da sabedoria (filo-sophos) mas
também o sábio do Amor, aquele que,
pelo Amor, vai fazendo a ascese da sua consciência desde os fenómenos físico,
passando pelos psíquicos até chegar aos espirituais, no mundo de nous, da mente divina. Este Eros
filosófico, como enfatiza Giovanni Reale no seu trabalho sobre o Banquete de Platão, é de suprema
importância e marca a filosofia como a grande ponte entre a realidade deste
mundo e as vivências espirituais. A filosofia é o estado intermédio que nos
permite rasgar os véus da ilusão deste mundo e abrir portas à sabedoria do
mundo celeste, origem natural da alma. A filosofia não é uma meta, é um
caminho, o fio de Ariana que nos poderá libertar do Labirinto da Vida. Deste
modo, a filosofia está para o Saber Iniciático, como a razão para a Intuição, sem
intuições de nous que ilumine a
inteligência dificilmente poderemos ganhar contacto com a Realidade. Para
activar este contacto com a Realidade, os filósofos antigos propunham uma
coerência entre o pensamento, a palavra e a acção. A acção recta, o imperativo
categórico de Kant, a coerência pensamento-acção aliada à capacidade de reflexão
cria um ambiente próprio à emergência de intuições.
A Filosofia e o Novo Paradigma
“ (...)
a
identificação dos limites, das insuficiências estruturais do paradigma
científico moderno é o resultado do grande avanço no conhecimento que ele
propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos
pilares em que se funda. (...) Os avanços
da microfísica, da astrofísica e da biologia das últimas décadas restituíram à
natureza as propriedades de que a ciência moderna a expropriara. O aprofundamento do conhecimento conduzido
segundo a matriz materialista veio a desembocar num conhecimento idealista.
(...) começa hoje a reconhecer-se uma
dimensão psíquica da natureza “a mente mais ampla” de que fala Bateson, da qual
a mente humana é apenas uma parte, uma mente imanente ao sistema global social
e à ecologia planetária a que alguns chamam Deus. Geoffrey Chew postula a
existência de consciência na natureza como um elemento necessário à
autoconsistência desta última e, se assim for, as futuras teorias terão de
incluir o estudo da consciência humana. Convergentemente, assiste-se a um
renovado interesse pelo “inconsciente colectivo”, imanente à humanidade no seu
todo, de Jung.»[9]
Boaventura de Sousa Santos
Oração de Sapiência proferida na abertura solene das aulas na
Universidade de Coimbra, em 1985
Reiteramos. O regresso da
filosofia está intimamente relacionado com o reatar do contacto do Homem com a
Natureza no seu sentido amplo, do pensamento humano com a dimensão mental que é
a raiz de todo o fenómeno.
Nas últimas décadas esse contacto
tem acontecido amiúde em certos âmbitos da ciência.
Em primeiro lugar, destacamos os
membros dos Encontros Eranos, fóruns multidisciplinares onde pontificaram o
psicólogo Jung, o orientalista Henry Corbin, o físico Wolfgang Pauli, o
helenista Karl Kereni, o historiador das religiões Mircea Eliade, o antropólogo
Gilbert Durand, entre outros. Todos eles tinham uma atitude filosófica na
procura de uma visão holistica do Homem e do Universo em contraponto com a desagregação
da especialização do conhecimento originada pela ciência moderna.
Dos seus trabalhos emerge a
consciência da realidade mítica, de como os mitos no mundo mental estruturam a
consciência humana.
Fernand Schwarz seguindo a linha
de pensamento de pensadores como Mircea Eliade e Gilbert Durand, refere a
importância da representação do mundo
para cada ser humano. Quer dizer, tem gravado na sua alma a sua visão do mundo
que lhe dá a escala de valores e o enfoca no contacto com o universo. Como se
pode transmutar e renovar esta visão do
mundo, claramente através do exercício da filosofia.
Um outro âmbito muitos cientistas
se tornaram filósofos foi a área da física quântica. Quando os resultados das
experiências são desconcertantes para o velho paradigma e a ciência não permite
uma verificação para além dos instrumentos físicos, então surge o pensamento
filosófico. Os factos são científicos, a interpretação dos mesmos é filosófica.
Vejamos algumas das reflexões do físico quântico Lothar Schäfer: «Da mesma maneira
que os átomos mortos [inorgânicos] formam organismos vivos e as moléculas
estúpidas formam cérebros inteligentes, as entidades metafísicas formam a
realidade física.»
«Nas experiências que testam a
realidade quântica abriu-se uma janela para um diferente tipo de realidade,
talvez para o domínio das ideias de Platão, ou para uma Realidade Divina, onde
o mental pode existir sem um substrato material.»
«No fundamento da realidade,
encontramos relações numéricas – princípios não-materiais – sobre os quais se
baseia a ordem do mundo. A base do mundo material é não-material.»
«Quando [um electrão] é
observado, é sempre uma partícula e o padrão de interferência entra em ruptura. Quando
não é observado, as ondas de interferência evoluem imediatamente e dispersam-se
por ampla regiões do espaço.»
«Heisenberg acreditava que a
matéria sem forma não é totalmente real. Acreditava que o tecido em si, informe
e indefinido, não é parte da realidade, mas tem o potencial, potentia, de se
tornar realidade ao ganhar forma. A forma confere realidade à matéria.»
Assinalemos que na visão
platónica existe uma hierarquia entre as ideias, por exemplo: existem as ideias
puras, como o arquétipo do belo, e existem as ideias que «dão realidade» aos
objectos. Uma cadeira existe porque tem o suporte mental da ideia-cadeira.
Estas últimas «ideias» (eidos em grego) podem também ser denominadas «formas»,
o que, aliás, acontece nas traduções anglo-saxónicas de eidos. Voltando a citar
Schäfer: «Ao nível das partículas elementares, os estados de ser com a
aparência de ideia tornam-se em estados com aparência de matéria; as tendências
Heisenberg são tendências com aparência de pensamento, e os resultados dos
eventos Heisenberg, com aparência de matéria. A realização assemelha-se à
materialização.»[10]
Este grupo de físicos-filósofos
que decidiram promover o divórcio da ciência com a filosofia materialista não
tem tido a vida fácil no âmbito da investigação científica. Disso temos o
testemunho pessoal de Lothar Schäfer e Basarab Nicolescu. Rupert Shelldrake já
enfatizou essa realidade e quando Fritoj Capra, autor de O Tao da Física, se queixou desse facto a Heisenberg, este
respondeu-lhe sorrindo: «A mim também me acusam constantemente de me dedicar
demasiado à filosofia. (…) Você e eu somos
outro tipo de físicos.»
Nesta área da física-filosofia
parce-nos importante destacar a visão transdisciplinar holistica proposta por
Basarab Nicolescu e as relações de Ervin Lazlo entre a ciência e o mundo akashico da filosofia hindu.
«A física moderna optou, definitivamente, por
Platão. Com efeito, as mais pequenas unidades de matéria não são objectos
físicos no sentido vulgar do termo, mas formas, estruturas, ‘Ideias’ – na
acepção platónica da expressão – de que não é possível falar sem ambiguidades a
não ser em termos matemáticos.»
Heisenberg
«A filosofia natural dos gregos, voltada para
a materialidade, combinada com a razão aristotélica, obteve uma vitória tardia,
porém significativa sobre Platão.
Em toda a vitória há sempre o germe de
uma derrota futura. Mais recentemente têm-se multiplicado os sinais indicativos
de uma mudança de ponto de vista.»[11]
Carl Gustav Jung
A Importância da Filosofia num mundo desconcertante
«A resposta conveniente ao que é a
pós-modernidade não é fácil nem simples. (...) algo se pôs em movimento dentro
do pensamento contemporâneo, algo que talvez nem seuqer seja um pensamento, mas
um sentimento, uma vontade, uma nostalgia, um presságio. Pelo facto de não
constituir uma evolução das ainda chamadas “posições de vanguarda”, não responde
a uma continuidade mecânica, embora seja inexoravelmente lógica. É uma ruptura com todas elas, com vocação de
profundidade. À cultura horizontal contrapõe-se a cultura vertical, em
profundidade vertical.
É evidentemente filosófica, já que busca a verdade mais além do que (…) definimos
como “Os Mitos do Século XX”. Não se inclina para a esquerda nem para a
direita, mas, surgindo, das profundidades do inconsciente colectivo e – por que
não? – do subconsciente individual, irrompe quase violentamente por cima da
superficialidade do pensamento político, social, económico, artístico e
científico das últimas décadas.»[12]
Jorge Angel Livraga
Voltando às ideias iniciais deste
breve trabalho, vivemos hoje num mundo de charneira entre velhos paradigmas que
se desmoronam e novos em
formação. As formas religiosas já não respondem às
inquietações interiores do Homem do século XXI e a ciência medievaliza-se em
tribos de académicos, muitas vezes mais preocupados com o seu estatuto do que
com a procura empenhada da verdade. Nestes tempos intermédios surge a filosofia
como via de auto-descoberta e de realização humana, propiciadora de um processo
de individuação que gera a verdadeira individualidade, ou seja, permite o
reencontro íntimo com o sentido da vida, o encontro com o «centro». No nosso
tempo, esta foi a proposta pioneira de Jorge Angel Livraga ao criar em 1957 a Nova Acrópole, uma
Escola de Filosofia à maneira clássica que fomenta uma nova cosmovisão - termo
que Livraga utilizava recorrentemente -, um processo de transmutação interior
baseado na compreensão filosófica e consequente prática coerente que se
reflecte num novo estilo de vida mais espiritualmente mais ecológico.
Décadas mais tarde,
fundamentalmente nos E. U. A., a filosofia prática e aconselhamento filosófico
tomaria nova força em ruptura com as filosofias teoréticas da modernidade. Esta
emergência actual do carácter prático da filosofia foi um fenómeno imprevisível
que continua a expandir-se notavelmente, refira-se os best-sellers de Lou Marinoff, como o caso de Mais Platão, Menos Prozac. Mas a muitos destes filósofos práticos,
talvez demasiados psicologistas, falta-lhes o sentido da visão do mundo já
constatada pela antropologia do imaginário, quer dizer, não basta resolver uma
questão particular do ser humano, é necessária uma nova cosmovisão que o
reintegre no universo, só assim reencontrará o sentido da vida e o seu
«centro», que mais não é que a sua alma profunda. Para se chegar aí é
necessária uma filosofia, simultaneamente contemplativa e prática, que provoque
a reminiscência platónica, isto é, a recordação da sabedoria latente mas
profundezas do ser humano, o seu «património antigo».
Na área da psicologia também há
psicólogos que começam a recorrer à filosofia, tal é o caso de Jonathan Haidt
que trabalha no âmbito da psicologia positiva. Mas também aqui se revela a
falta de um estudo profundo da história das mentalidades e das correntes
filosóficas. No entanto, algo está a mexer e a verdade é que, a nosso ver, a
psicologia não pode ser separada da filosofia, assim como o psicólogo para
exercer com propriedade a sua missão deverá ter uma atitude filosófica.
Noutra perspectiva, a filosofia
como faculdade para reflectir sobre os acontecimentos e escudo para não ser
invadido pelos formas mentais negativas do ar do tempo, adquire hoje em dia uma
importância vital dada a pressão violenta da sociedade de consumo, mormente dos
mass media. Por outro lado, os
encantos e ciladas do materialismo espiritual são hodiernamente mais do que
muitos e é necessário um grande esforço filosófico para manter a lucidez e não
mesclar os interesses da alma, ou Ego Espiritual, do egoísmo da personalidade,
o ego inferior.
Finalizamos referindo a
importância para um novo paradigma filosófico (natural) do estudo profundo e
imparcial da história. Uma filosofia com impulso espiritual gera uma nova
cultura, uma cultura consistente dará origem a uma nova civilização que surgirá
depois de uma idade média. Mas esta nova cultura que reate um grupo humano com
a seiva espiritual que vem do fundo dos tempos, com as raízes da árvore
evolutiva da humanidade, tem de partir de um conhecimento vivo da história, de
uma filosofia da história que procure o melhor do passado, do atemporal e
arquetípico que se manifestou no passado, e o projecte no futuro. Do mesmo modo
que o Homem é, por natureza, o microcosmos que liga a Terra ao Céu, que está
entre o animal e o divino, também encontra o seu «centro» colectivo ao reatar o
contacto com as raízes históricas (e pré-históricas) e projectar no futuro as
seiva que delas emerge.
A filosofia natural transmuta o
homem-animal-racional em ser espiritual integrado nos cosmos. A filosofia da
história transmutará o niilismo e superstição da nossa época na consciência do
devir histórico, no reencontro com o telos,
a finalidade dharmica da Humanidade.
Saudemos o regresso da filosofia
e de uma esperança renovada num mundo novo e melhor.
Paulo Alexandre Loução
Instituto Internacional Hermes
Coordenador da Nova Acrópole de Lisboa
[1] Jorge Angel Livraga, «O Racismo que vem aí», in
revista Nova Acrópole, nº 46. 1990,
pp. 4-5. Artigo escrito em Agosto de 1990. Sublinhado nosso.
[2] Jorge Angel Livraga, «O Neo-Racionalismo», in Os Grandes Mitos do Século XX, edições
Nova Acrópole, Porto, 1995, p. 34. Sublinhado nosso.
[3] Jean-Pierre Vernant, Origens do Pensamento Grego, Teorema,
Lisboa, 1987.
[4] Fernand
Schwarz, A Tradição e as Vias de
Conhecimento, OINAB, S. Paulo, 1993, p. 12; como introdução ao tema da catástrofe metafísica do Ocidente
aconselhamos a leitura desta obra.
[5] Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno, Ed. 70,
Lisboa, 1998, p. 49.
[6] Agenda do Centenário de Fernando Pessoa,
org. de Pedro Teixeira da Mota, Ed. Manuel Lencastre, 1988.
[7] Gilbert Durand, La foi du cordonnier, Ed. Denoël, p. 23.
[8] Vide a sua obra Corpo Espiritual, Terra Celeste.
[9] Boaventura de Sousa
Santos, Um Discurso Sobre as Ciências,
Afrontamento, Porto, 1987. Sublinhado nosso.
[10]
Lothar Schäfer, «Em Busca da Realidade
Divina – A ciência como fonte de inspiração», Ésquilo, Lisboa, 2005.
[11] C. G. Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Colectivo,
Ed. Vozes, Petrópolis, 2000, p. 88.
[12] Jorge Angel Livraga, «O
que é a Pós-Modernidade», in revista Nova
Acrópole, Lisboa.
Bom dia Sr. Paulo,
ResponderEliminarGostaria de lhe dizer que é muito agradável, numa manhã chuvosa de uma terca- feira, encontrar seu blog. Já havia ouvido falar do seu trabalho aí em Portugal. O diretor de Nova Acrópole aqui de Joinville, o Fernando, fez elogios ao seu trabalho em Nova Acrópole aí em Portugal.
Me interessei pelos seus livros, mas ainda não tive contato com eles aqui no Brasil. Vou me esforçar para adquirir suas obras.
Parabéns pelo seu trabalho.
Um forte abraço de seu irmão acropolitano brasileiro!
Daniel Nasiaseno Saramento - Filial Joinville - Santa Catarina - Brasil Sul.
Bom dia Sr. Paulo,
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Daniel Nasiaseno Saramento - Filial Joinville - Santa Catarina - Brasil Sul.