sábado, 4 de maio de 2013

O Regresso da Filosofia



«Em cada momento histórico move-se um pêndulo que rege os acontecimentos, e tanto a sua parte fixa como a móvel constituem uma máquina maravilhosa, que não deixa nem deixará de ser uma máquina que marca o ritmo da mecânica histórica, os latidos de um coração que vive, que acelera e desacelera, que sofre às vezes taquicardias; que um dia nasceu e que acabará por morrer. (…)
Contra este ritmo universal nada podem as nossas disquisições intelectuais. É como é, e a única coisa que podemos fazer é percebê-lo ou não.
Quem não o percebe, não merece regra geral o epíteto de filósofo, pois fica-se pela superfície dos acontecimentos sem se incomodar em verificar as suas causas profundas. A alienação, que perturba a razão e a percepção, deixa-os no aparente paradoxo da existência crendo que o seu tempo – o que eles vivem – é único, que o progresso é constante e linear. Mas a História (…) é cíclica e responde a motores ocultos que se desvelam somente àqueles que neles meditam profundamente

Jorge Angel Livraga[1]


No nosso mundo acelerado, em constante mutação, anestesiado pelo excesso de informação e aletergado pela faceta maiávica, ilusória, da tecnologia transformado em finalidades e não em meios que enriqueçam o Ser Humano, ocorrem uma série de fenómenos, muitas vezes pouco visíveis a o olho nu, mas que merecem uma reflexão aturada de modo a podermos ultrapassar a mediocridade das ideias feitas que alimentam o ar do nosso tempo. Um desses fenómenos, invisível na confusão do nevoeiro da actualidade, mas bem claro para quem tiver a coragem de meditar sem pré-conceitos no processo de mutação da actualidade, é o «Regresso da Filosofia». As formas mentais do velho paradigma já não respondem - nem iludem a resposta – às questões do Homem do século XXI, colocado numa impressionante charneira histórica: as formas religiosas tradicionais estão anquilosadas, a crise política, económica e de valores é bem visível, há uma transição de Era astrológica, Peixes para Aquário, o que solicita novas formas de espiritualidade, e, concomitantemente, finaliza um ciclo de filosofia para dar espaço do que poderemos talvez denominar uma Filosofia Natural de carácter platónico – desenvolveremos este tema mais adiante. Neste tempo de profundas mudanças, emerge a necessidade de verdadeiros filósofos que possam dar uma nova luz sobre a catadupa vertiginosa dos acontecimentos que gera um desconcerto natural para quem não capta os motores profundos que dão origem a esta aceleração.
Alan Minc no seu trabalho A Nova Idade Média, publicada há mais de uma década, assinala como o Ocidente, depois de 1989, não soube encontrar um princípio fundador no período post-comunista. Quer dizer, esgotou-se o tempo e a energia das formas mentais neo-racionalistas de carácter materializante-mecanicista e, sem novos arquétipos a inspirar os centros de poder, entrou-se nos inícios de um novo período medieval, ou seja, num tempo intermédio entre uma civilização que cai por desgaste e perversão de valores e uma nova que surgirá a partir das sementes que, entretanto, se plantarem.
A nosso ver, a História da Humanidade é uma sucessão de civilizações com os seus períodos intermédios entre cada uma delas. Um arquétipo transforma-se numa forma mental colectiva, num Ideal, que de início é captado por um restrito grupo de filósofos. Estes modelam as primeiras manifestações dessa Ideia, surge a fase auroral, uma filosofia dá origem a uma cultura que, com o tempo, se expande tornando-se uma civilização que atingirá o seu apogeu. A partir de certo momento, a Ideia ou alma dessa civilização começa a desencarnar, os humanos começam a desvincular-se dos valores fundadores e essa forma civilizatória entra em decadência até se desmoronar completamente. Este é um processo natural constatável através do estudo do carácter cíclico da História e dos motores profundos que a regem, dando especial enfoque ao ambiente mítico e psicológico de cada época.

O Ciclo da Filosofia Ocidental e a Catástrofe Metafísica do Ocidente

«A catástrofe de um racionalismo exagerado começou com Aristóteles na corporização das ideias e rebentou com Descartes, o qual se apoiou na dúvida e circunscreveu a racionalidade do mundo a leis de sucessão mecânica, excluindo toda a Finalidade Universal, negando os princípios platónicos. (…)
As linhas mestras do pensamento humano diluem-se.»[2]

Jorge Angel Livraga

Estamos hoje no final de um ciclo de aproximadamente três mil anos. Dentro do que a história nos permite conhecer, descortinamos dois factos importantes que marcam os germes da ruptura entre o Homem e a sacralidade da Natureza, ou seja, a visão tradicional da vida. Por um lado, o judaísmo tornou-se uma religião histórica e não mitológica e por outro, paralelamente, a invasão da Hélade pelos dórios marcou uma ruptura com a Grécia tradicional da civilização micénica. Este último facto que desencadeou o ciclo da filosofia ocidental.
Jean-Pierre Vernant não hesitou em afirmar: «A queda do poder micénico, a expansão dos dórios no Peloponeso, de Creta a Rhodes, inauguram uma nova era da civilização grega. Uma distância intransponível estabelece-se, então, entre os homens e os deuses.»[3] O antropólogo Fernand Schwarz corrobora esta afirmação: «A invasão da Hélade pelos dórios, entre os séculos XII e VIII a. C., provocou a desintegração das crenças religiosas primitivas que o universo micénico soubera preservar, mantendo um equilíbrio justo entre os poderes matriciais da Terra e o espírito fecundante do Céu.»[4] Inicia-se um ciclo de mutação profunda na mentalidade ocidental que vai conduzir à perda gradual da compreensão das funções mítica e iniciática na sociedade humana. Neste quadro, nasce a espantosa aventura da filosofia, iniciada na Grécia clássica dos séculos VI eV a. C., mas que contém à nascença o germe desse fenómeno surpreendente que Henry Corbin apelidou de catástrofe metafísica do Ocidente. A razão diferencia-se, separa-se da religião e empenha-se em construir uma visão científico-racional do mundo e da vida. Este ciclo dura dois mil e quinhentos anos, durante os quais, por um efeito de cascata, os sistemas filosóficos racionalistas se vão sucedendo até chegarmos aos famosos positivismos e marxismos que enquadram mitologicamente (o homem não vive sem mitos) a sociedade actual.
A tensão criada entre Platão e Aristóteles é, em nosso entender, da maior importância. O pai da Academia dá prioridade ao Mundo das Ideias, ou seja, este é real, não sendo o mundo sensível mais do que a sombra daquele. O homem, através da educação (Ginástica para o corpo; Música – ciências e artes das musas – para a psykhé; e Dialéctica para o espírito, nous), deve ir-se libertando da caverna do mundo sensível e ascender paulatinamente à beleza dos divinos arquétipos. Esta ascensão é proporcionada pela reminiscência – a lembrança da alma. A saudade como nostalgia do paraíso perdido é platónica. Platão é um filósofo da síntese, enquanto Aristóteles, de início seu discípulo, é um filósofo da análise, sendo verdadeiramente o pai da ciência moderna. O filósofo do Liceu começa a investigar o mundo sensível, não aceita a necessidade da existência per se do Mundo das Ideias e corporiza-as, nascendo deste modo a tensão entre Aristóteles e Platão. O discípulo de Sócrates incorpora a razão e o mithos no seu sistema holístico, enquanto Aristóteles se afasta do mito, dando a primazia à razão. Sabemos que, de Aristóteles a Averroes, a Descartes, aos iluministas, a Auguste Comte, etc., vai uma grande distância em termos de profundidade filosófica. Para chegarmos a essa conclusão, basta-nos ler a Ética a Nicómaco, mas quando o filósofo do Liceu dá preponderância ao estudo da Natureza baseado nas percepções que nos chegam com origem nos cinco sentidos em detrimento da imaginação mítica (ou sem a incluir) e da experiência iniciática, começa a limitar a percepção abrangente do Real. Para o pensamento de índole aristotélica, a imaginação não um o órgão da alma que permite o acesso ao mundo espiritual, como afirmou Giordano Bruno, mas simples fantasia construída a partir das sensações recebidas do mundo exterior. Esta visão do mundo faz com que o homem perca a sua interioridade, não estando consciente da sua necessidade de se alimentar espiritualmente através da reminiscência arquetípica. Aliás, o próprio estudo do mundo sensível, apadrinhado por Aristóteles, demonstra hoje cabalmente que os cinco sentidos não são as únicas portas para a percepção do real. O cientista português, Helder Bértolo, realizou a sua tese de mestrado, na área da biofísica e da física médica, sobre O Sonho e Imagem em Invisuais. Chegou à conclusão de que não existe grande distinção entre os sonhos de um cego de nascença e os de um normovisual, quer dizer, os invisuais congénitos têm os seus sonhos com conteúdos visuais idênticos aos das pessoas com o órgão da visão saudável. Quando um normovisual fecha os olhos emergem as ondas alfa que tem no cérebro, mas se imaginar um objecto estas bloqueiam e aparecem altas frequências. Este facto acontece também nos sonhos dos cegos congénitos, ou seja, processam-se com imagens reais que o sentido da visão nunca conseguiu captar por estar obstruído. Tivemos a oportunidade de apreciar alguns desenhos efectuados por um dos invisuais congénitos que aceitaram colaborar no estudo de Helder Bértolo. Nestes desenhos vêem-se perfeitamente um barco, um gato, uma galinha, um moinho, montanhas, uma nuvem e um Sol com os seus raios. Quanto a nós, este caso só tem uma explicação satisfatória se aceitarmos a existência da imaginação como órgão da alma, noutro plano que não o dos sentidos físicos, e também a existência per se do inconsciente colectivo, onde se encontra toda essa biblioteca de imagens e mitos à qual a imaginação tem acesso.
Platão, iniciado nas escolas de mistérios do Antigo Egipto, incorpora no seu sistema filosófico os grandes pilares da sabedoria tradicional, tal como o reconhece Mircea Eliade: «Poderíamos então dizer que esta ontologia ‘primitiva’ tem uma estrutura platónica, e Platão poderia ser considerado neste caso como o filósofo por excelência da ‘mentalidade primitiva’, isto é, como o pensador que conseguiu valorizar filosoficamente os modos de existência e de comportamento da humanidade arcaica. Claro que a ‘originalidade’ do seu génio filosófico não fica de modo nenhum diminuída; porque o grande mérito de Platão continua a ser o seu esforço em justificar teoricamente essa visão da humanidade arcaica, através dos meios dialécticos que a espiritualidade da sua época lhe podia fornecer.»[5]
A filosofia platónica influenciou bastante o cristianismo nascente, nomeadamente através da Escola Neoplatónica de Alexandria fundada por Amónio Saccas, no século II d. C.. Deste foco luminoso de filosofia espiritual emergiram grande vultos da espiritualidade como Plotino, Jâmblico, Proclo, Hipátia, etc., e inspiraram-se nele alguns dos padres mais cultos da Igreja como Orígenes e Clemente de Alexandria. Fernando Pessoa assevera mesmo: «O cristianismo, cuja base é o neo-platonismo de Alexandria: pode dizer-se sem exagero que, no campo intelectual o fundador do cristianismo foi Platão, assim como no campo social foi S. Paulo, ainda que fosse o mesmo Cristo no campo divino (...)».[6] Mas, no século XIII, segundo o pensamento de Henry Corbin, surge a primeira ruptura que marca a catástrofe metafísica do Ocidente. Gilbert Durand, em franca sintonia com este pensamento, sustenta que foi «o repúdio progressivo pela escolástica peripatética [aristotélica] e averroísta da anamnésia platónica de Escoto Erígena e de Dionísio, o Aeropagita, que marca bem o que Henry Corbin chamou de a catástrofe metafísica do Ocidente».[7]
Na realidade, a escolástica adopta o pensamento aristotélico veiculado por Averroes e separa a filosofia da teologia, colocando esta ao serviço da ciência. A fé divorcia-se da razão, o que é absolutamente oposto à sabedoria tradicional. Os teólogos racionalistas da escolástica separam o conhecimento humano da revelação divina; agrava-se a ruptura entre o sagrado e o profano. Quer isto dizer, em definitivo, que o pensamento humano deixa de ter o direito de especular (tão pouco pode compreender, tem é de ter fé) sobre as grandes questões da espiritualidade, sendo forçado a obedecer coercivamente às directrizes da Igreja. Assim, essa energia mental começa a dirigir-se para as questões do mundo sensível. Poucos séculos depois, surge o cartesianismo, instaurando a dialéctica entre o pensamento humano, inteligente, e a natureza morta, da qual o homem se deve tornar possuidor e mestre. Entretanto Descartes, como crente que era, não deixava de rezar à Virgem Maria.
Vem o iluminismo e com ele a ciência está cada vez mais separada da religião, surgindo depois as doutrinas materialistas do século XIX na sua forma mais redutora. Para os seguidores do positivismo, a humanidade, que surgiu do Deus Acaso, tem vindo a cumprir uma evolução linear. O homem pré-histórico, com os seus totens e tabus, viveu na chamada etapa mágica da humanidade. Seguiu-se um período ainda muito supersticioso mas já um pouco mais racional, a etapa religiosa, com o alvorecer das civilizações da Ásia Menor. Com a Grécia nasce o homem racional, desperto, e a humanidade alcança a importante etapa filosófica, embora o conhecimento seja ainda subjectivo. Finalmente, no auge da evolução humana surge a era científica, ou positiva.
Por outras palavras, a humanidade, numa evolução linear, tinha acedido ao estado teológico de consciência, deste passara ao metafísico e, finalmente, chegara ao estado positivo. Para esta nova religião dessacralizada e materialista, – que tem nos intelectuais racionalistas os seus sacerdotes – a humanidade, graças ao desenvolvimento da ciência, viveria no final do século XX em pleno paraíso na Terra. Lembremo-nos de que para o marxismo – naturalmente inspirado na leitura positivista da realidade – a «religião é o ópio do povo», precisando o homem para ser feliz simplesmente da libertação económica, ou seja, com os problemas de natureza material resolvidos, seria naturalmente feliz. Esta visão positivista da realidade é a forma mental que ainda hoje impera no Ocidente, ao mesmo tempo que as religiões institucionalizadas vivem fossilizadas dentro das suas formas mentais medievais.
É neste contexto que a antropologia do imaginário e a história das religiões podem dar um contributo importante à nova era que se avizinha. Tudo na Natureza nasce, cresce, tem o seu período de maturidade, envelhece e morre. Tanto as civilizações humanas, como as formas religiosas ou os movimentos filosóficos estão integrados na Natureza e não podem fugir às suas leis. Segundo pensamos, as representações do mundo criadas pelas ideologias são formas mentais que vivem na correspondente esfera de vibração mental, fazendo parte da Natureza invisível e tendo o seu lapso de tempo natural consoante a sua energia. Conhecemo-las como a consciência ou alienação mental de cada época (ar do tempo segundo o jornalista José António Saraiva), na qual a esmagadora maioria de seres humanos está mentalmente imersa e prisioneira. Serão estas formas mentais uma criação humana ou serão antes os homens que, entrando em consonância com estas formas de natureza mental, desempenham a função de seus veículos no momento x da espiral do tempo? Eis uma questão filosófica que valerá a pena meditarmos.


O Regresso da Filosofia Natural

«Afirmamos e afirmaremos sempre que o homem que não consegue ver na Natureza, a expressão original, o grande depósito do pensamento humano é intelectualmente um desesperado

Fernando Pessoa


Mas esgotado este ciclo como neo-racionalismo e as formas teoréticas de filosofia, onde o afastamento do pensamento humano à amplitude e leis da Natureza é, para nós, evidente, reemerge o que poderemos denominar como filosofia natural de carácter platónico. Uma atitude de procura do Saber meditando sobre as grandes questões do Homem, da sociedade, da história, da ciência, com o fito de captar a mecânica interna da Natureza e os motores mais profundos dos fenómenos e acontecimentos. O reducionismo do Real à esfera do medível, do visível, do «científico», afastou a filosofia da Realidade. O regresso a uma visão do mundo que inclua as dimensões física, psíquica e espiritual da Natureza, como o fez Henry Corbin[8] e foi aceite por muitos investigadores do movimento da Nova Antropologia, permite um regresso da filosofia natural, ou seja, percepcionarmos que os fenómenos psíquicos, mentais e espirituais, também estão sujeitos a leis naturais e que a verdadeira filosofia é a procura destas leis fundamentais que regem o universo. O regresso da filosofia assenta no novo paradigma que está a nascer permitindo um novo contacto do pensamento humano com a mecânica interna da Natureza. A nosso ver, o grande percursor desta atitude renovada da filosofia foi Jorge Angel Livraga que, na segunda metade do século XX, propôs uma nova cosmovisão, deixou reflexões filosóficas sobre uma miríade de temas e foi um exemplo para os seus discípulos de como a filosofia pode ser transformadora e enriquecer a vida interior dos humanos.
Se no ciclo da filosofia ocidental que agora se esgotou o pensamento aristotélico ganhou a supremacia, no regresso da filosofia o pensamento de Platão ganha uma renovada importância.
Platão relaciona claramente nos seu diálogos o filósofo com o iniciado nos mistérios, aquele que acede directamente à visão do mundo divino. Quer dizer, o filósofo não é somente o amante da sabedoria (filo-sophos) mas também o sábio do Amor, aquele que, pelo Amor, vai fazendo a ascese da sua consciência desde os fenómenos físico, passando pelos psíquicos até chegar aos espirituais, no mundo de nous, da mente divina. Este Eros filosófico, como enfatiza Giovanni Reale no seu trabalho sobre o Banquete de Platão, é de suprema importância e marca a filosofia como a grande ponte entre a realidade deste mundo e as vivências espirituais. A filosofia é o estado intermédio que nos permite rasgar os véus da ilusão deste mundo e abrir portas à sabedoria do mundo celeste, origem natural da alma. A filosofia não é uma meta, é um caminho, o fio de Ariana que nos poderá libertar do Labirinto da Vida. Deste modo, a filosofia está para o Saber Iniciático, como a razão para a Intuição, sem intuições de nous que ilumine a inteligência dificilmente poderemos ganhar contacto com a Realidade. Para activar este contacto com a Realidade, os filósofos antigos propunham uma coerência entre o pensamento, a palavra e a acção. A acção recta, o imperativo categórico de Kant, a coerência pensamento-acção aliada à capacidade de reflexão cria um ambiente próprio à emergência de intuições.

A Filosofia e o Novo Paradigma

(...) a identificação dos limites, das insuficiências estruturais do paradigma científico moderno é o resultado do grande avanço no conhecimento que ele propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda. (...) Os avanços da microfísica, da astrofísica e da biologia das últimas décadas restituíram à natureza as propriedades de que a ciência moderna a expropriara. O aprofundamento do conhecimento conduzido segundo a matriz materialista veio a desembocar num conhecimento idealista. (...) começa hoje a reconhecer-se uma dimensão psíquica da natureza “a mente mais ampla” de que fala Bateson, da qual a mente humana é apenas uma parte, uma mente imanente ao sistema global social e à ecologia planetária a que alguns chamam Deus. Geoffrey Chew postula a existência de consciência na natureza como um elemento necessário à autoconsistência desta última e, se assim for, as futuras teorias terão de incluir o estudo da consciência humana. Convergentemente, assiste-se a um renovado interesse pelo “inconsciente colectivo”, imanente à humanidade no seu todo, de Jung[9]

Boaventura de Sousa Santos
Oração de Sapiência proferida na abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra, em 1985

Reiteramos. O regresso da filosofia está intimamente relacionado com o reatar do contacto do Homem com a Natureza no seu sentido amplo, do pensamento humano com a dimensão mental que é a raiz de todo o fenómeno.
Nas últimas décadas esse contacto tem acontecido amiúde em certos âmbitos da ciência.
Em primeiro lugar, destacamos os membros dos Encontros Eranos, fóruns multidisciplinares onde pontificaram o psicólogo Jung, o orientalista Henry Corbin, o físico Wolfgang Pauli, o helenista Karl Kereni, o historiador das religiões Mircea Eliade, o antropólogo Gilbert Durand, entre outros. Todos eles tinham uma atitude filosófica na procura de uma visão holistica do Homem e do Universo em contraponto com a desagregação da especialização do conhecimento originada pela ciência moderna.
Dos seus trabalhos emerge a consciência da realidade mítica, de como os mitos no mundo mental estruturam a consciência humana.
Fernand Schwarz seguindo a linha de pensamento de pensadores como Mircea Eliade e Gilbert Durand, refere a importância da representação do mundo para cada ser humano. Quer dizer, tem gravado na sua alma a sua visão do mundo que lhe dá a escala de valores e o enfoca no contacto com o universo. Como se pode transmutar e renovar esta visão do mundo, claramente através do exercício da filosofia.
Um outro âmbito muitos cientistas se tornaram filósofos foi a área da física quântica. Quando os resultados das experiências são desconcertantes para o velho paradigma e a ciência não permite uma verificação para além dos instrumentos físicos, então surge o pensamento filosófico. Os factos são científicos, a interpretação dos mesmos é filosófica. Vejamos algumas das reflexões do físico quântico Lothar Schäfer: «Da mesma maneira que os átomos mortos [inorgânicos] formam organismos vivos e as moléculas estúpidas formam cérebros inteligentes, as entidades metafísicas formam a realidade física.»
«Nas experiências que testam a realidade quântica abriu-se uma janela para um diferente tipo de realidade, talvez para o domínio das ideias de Platão, ou para uma Realidade Divina, onde o mental pode existir sem um substrato material.»
«No fundamento da realidade, encontramos relações numéricas – princípios não-materiais – sobre os quais se baseia a ordem do mundo. A base do mundo material é não-material.»
«Quando [um electrão] é observado, é sempre uma partícula e o padrão de interferência entra em ruptura. Quando não é observado, as ondas de interferência evoluem imediatamente e dispersam-se por ampla regiões do espaço.»
«Heisenberg acreditava que a matéria sem forma não é totalmente real. Acreditava que o tecido em si, informe e indefinido, não é parte da realidade, mas tem o potencial, potentia, de se tornar realidade ao ganhar forma. A forma confere realidade à matéria.»
Assinalemos que na visão platónica existe uma hierarquia entre as ideias, por exemplo: existem as ideias puras, como o arquétipo do belo, e existem as ideias que «dão realidade» aos objectos. Uma cadeira existe porque tem o suporte mental da ideia-cadeira. Estas últimas «ideias» (eidos em grego) podem também ser denominadas «formas», o que, aliás, acontece nas traduções anglo-saxónicas de eidos. Voltando a citar Schäfer: «Ao nível das partículas elementares, os estados de ser com a aparência de ideia tornam-se em estados com aparência de matéria; as tendências Heisenberg são tendências com aparência de pensamento, e os resultados dos eventos Heisenberg, com aparência de matéria. A realização assemelha-se à materialização.»[10]
Este grupo de físicos-filósofos que decidiram promover o divórcio da ciência com a filosofia materialista não tem tido a vida fácil no âmbito da investigação científica. Disso temos o testemunho pessoal de Lothar Schäfer e Basarab Nicolescu. Rupert Shelldrake já enfatizou essa realidade e quando Fritoj Capra, autor de O Tao da Física, se queixou desse facto a Heisenberg, este respondeu-lhe sorrindo: «A mim também me acusam constantemente de me dedicar demasiado à filosofia. (…) Você e eu somos outro tipo de físicos.»
Nesta área da física-filosofia parce-nos importante destacar a visão transdisciplinar holistica proposta por Basarab Nicolescu e as relações de Ervin Lazlo entre a ciência e o mundo akashico da filosofia hindu.

«A física moderna optou, definitivamente, por Platão. Com efeito, as mais pequenas unidades de matéria não são objectos físicos no sentido vulgar do termo, mas formas, estruturas, ‘Ideias’ – na acepção platónica da expressão – de que não é possível falar sem ambiguidades a não ser em termos matemáticos
Heisenberg

«A filosofia natural dos gregos, voltada para a materialidade, combinada com a razão aristotélica, obteve uma vitória tardia, porém significativa sobre Platão.
Em toda a vitória há sempre o germe de uma derrota futura. Mais recentemente têm-se multiplicado os sinais indicativos de uma mudança de ponto de vista[11]
Carl Gustav Jung


A Importância da Filosofia num mundo desconcertante

«A resposta conveniente ao que é a pós-modernidade não é fácil nem simples. (...) algo se pôs em movimento dentro do pensamento contemporâneo, algo que talvez nem seuqer seja um pensamento, mas um sentimento, uma vontade, uma nostalgia, um presságio. Pelo facto de não constituir uma evolução das ainda chamadas “posições de vanguarda”, não responde a uma continuidade mecânica, embora seja inexoravelmente lógica. É uma ruptura com todas elas, com vocação de profundidade. À cultura horizontal contrapõe-se a cultura vertical, em profundidade vertical.
É evidentemente filosófica, já que busca a verdade mais além do que (…) definimos como “Os Mitos do Século XX”. Não se inclina para a esquerda nem para a direita, mas, surgindo, das profundidades do inconsciente colectivo e – por que não? – do subconsciente individual, irrompe quase violentamente por cima da superficialidade do pensamento político, social, económico, artístico e científico das últimas décadas[12]

Jorge Angel Livraga



Voltando às ideias iniciais deste breve trabalho, vivemos hoje num mundo de charneira entre velhos paradigmas que se desmoronam e novos em formação. As formas religiosas já não respondem às inquietações interiores do Homem do século XXI e a ciência medievaliza-se em tribos de académicos, muitas vezes mais preocupados com o seu estatuto do que com a procura empenhada da verdade. Nestes tempos intermédios surge a filosofia como via de auto-descoberta e de realização humana, propiciadora de um processo de individuação que gera a verdadeira individualidade, ou seja, permite o reencontro íntimo com o sentido da vida, o encontro com o «centro». No nosso tempo, esta foi a proposta pioneira de Jorge Angel Livraga ao criar em 1957 a Nova Acrópole, uma Escola de Filosofia à maneira clássica que fomenta uma nova cosmovisão - termo que Livraga utilizava recorrentemente -, um processo de transmutação interior baseado na compreensão filosófica e consequente prática coerente que se reflecte num novo estilo de vida mais espiritualmente mais ecológico.
Décadas mais tarde, fundamentalmente nos E. U. A., a filosofia prática e aconselhamento filosófico tomaria nova força em ruptura com as filosofias teoréticas da modernidade. Esta emergência actual do carácter prático da filosofia foi um fenómeno imprevisível que continua a expandir-se notavelmente, refira-se os best-sellers de Lou Marinoff, como o caso de Mais Platão, Menos Prozac. Mas a muitos destes filósofos práticos, talvez demasiados psicologistas, falta-lhes o sentido da visão do mundo já constatada pela antropologia do imaginário, quer dizer, não basta resolver uma questão particular do ser humano, é necessária uma nova cosmovisão que o reintegre no universo, só assim reencontrará o sentido da vida e o seu «centro», que mais não é que a sua alma profunda. Para se chegar aí é necessária uma filosofia, simultaneamente contemplativa e prática, que provoque a reminiscência platónica, isto é, a recordação da sabedoria latente mas profundezas do ser humano, o seu «património antigo».
Na área da psicologia também há psicólogos que começam a recorrer à filosofia, tal é o caso de Jonathan Haidt que trabalha no âmbito da psicologia positiva. Mas também aqui se revela a falta de um estudo profundo da história das mentalidades e das correntes filosóficas. No entanto, algo está a mexer e a verdade é que, a nosso ver, a psicologia não pode ser separada da filosofia, assim como o psicólogo para exercer com propriedade a sua missão deverá ter uma atitude filosófica.
Noutra perspectiva, a filosofia como faculdade para reflectir sobre os acontecimentos e escudo para não ser invadido pelos formas mentais negativas do ar do tempo, adquire hoje em dia uma importância vital dada a pressão violenta da sociedade de consumo, mormente dos mass media. Por outro lado, os encantos e ciladas do materialismo espiritual são hodiernamente mais do que muitos e é necessário um grande esforço filosófico para manter a lucidez e não mesclar os interesses da alma, ou Ego Espiritual, do egoísmo da personalidade, o ego inferior.
Finalizamos referindo a importância para um novo paradigma filosófico (natural) do estudo profundo e imparcial da história. Uma filosofia com impulso espiritual gera uma nova cultura, uma cultura consistente dará origem a uma nova civilização que surgirá depois de uma idade média. Mas esta nova cultura que reate um grupo humano com a seiva espiritual que vem do fundo dos tempos, com as raízes da árvore evolutiva da humanidade, tem de partir de um conhecimento vivo da história, de uma filosofia da história que procure o melhor do passado, do atemporal e arquetípico que se manifestou no passado, e o projecte no futuro. Do mesmo modo que o Homem é, por natureza, o microcosmos que liga a Terra ao Céu, que está entre o animal e o divino, também encontra o seu «centro» colectivo ao reatar o contacto com as raízes históricas (e pré-históricas) e projectar no futuro as seiva que delas emerge.
A filosofia natural transmuta o homem-animal-racional em ser espiritual integrado nos cosmos. A filosofia da história transmutará o niilismo e superstição da nossa época na consciência do devir histórico, no reencontro com o telos, a finalidade dharmica da Humanidade.
Saudemos o regresso da filosofia e de uma esperança renovada num mundo novo e melhor.

Paulo Alexandre Loução
Instituto Internacional Hermes
Coordenador da Nova Acrópole de Lisboa


[1] Jorge Angel Livraga, «O Racismo que vem aí», in revista Nova Acrópole, nº 46. 1990, pp. 4-5. Artigo escrito em Agosto de 1990. Sublinhado nosso.
[2] Jorge Angel Livraga, «O Neo-Racionalismo», in Os Grandes Mitos do Século XX, edições Nova Acrópole, Porto, 1995, p. 34.  Sublinhado nosso.
[3] Jean-Pierre Vernant, Origens do Pensamento Grego, Teorema, Lisboa, 1987.
[4] Fernand Schwarz, A Tradição e as Vias de Conhecimento, OINAB, S. Paulo, 1993, p. 12; como introdução ao tema da catástrofe metafísica do Ocidente aconselhamos a leitura desta obra.
[5] Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno, Ed. 70, Lisboa, 1998, p. 49.
[6] Agenda do Centenário de Fernando Pessoa, org. de Pedro Teixeira da Mota, Ed. Manuel Lencastre, 1988.
[7] Gilbert Durand, La foi du cordonnier, Ed. Denoël, p. 23.
[8] Vide a sua obra Corpo Espiritual, Terra Celeste.
[9] Boaventura de Sousa Santos, Um Discurso Sobre as Ciências, Afrontamento, Porto, 1987. Sublinhado nosso.
[10] Lothar Schäfer, «Em Busca da Realidade Divina – A ciência como fonte de inspiração», Ésquilo, Lisboa, 2005.
[11] C. G. Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Colectivo, Ed. Vozes, Petrópolis, 2000, p. 88.
[12] Jorge Angel Livraga, «O que é a Pós-Modernidade», in revista Nova Acrópole, Lisboa.

2 comentários:

  1. Bom dia Sr. Paulo,
    Gostaria de lhe dizer que é muito agradável, numa manhã chuvosa de uma terca- feira, encontrar seu blog. Já havia ouvido falar do seu trabalho aí em Portugal. O diretor de Nova Acrópole aqui de Joinville, o Fernando, fez elogios ao seu trabalho em Nova Acrópole aí em Portugal.
    Me interessei pelos seus livros, mas ainda não tive contato com eles aqui no Brasil. Vou me esforçar para adquirir suas obras.
    Parabéns pelo seu trabalho.

    Um forte abraço de seu irmão acropolitano brasileiro!
    Daniel Nasiaseno Saramento - Filial Joinville - Santa Catarina - Brasil Sul.

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  2. Bom dia Sr. Paulo,
    Gostaria de lhe dizer que é muito agradável, numa manhã chuvosa de uma terca- feira, encontrar seu blog. Já havia ouvido falar do seu trabalho aí em Portugal. O diretor de Nova Acrópole aqui de Joinville, o Fernando, fez elogios ao seu trabalho em Nova Acrópole aí em Portugal.
    Me interessei pelos seus livros, mas ainda não tive contato com eles aqui no Brasil. Vou me esforçar para adquirir suas obras.
    Parabéns pelo seu trabalho.

    Um forte abraço de seu irmão acropolitano brasileiro!
    Daniel Nasiaseno Saramento - Filial Joinville - Santa Catarina - Brasil Sul.

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