sábado, 3 de janeiro de 2009

Conheceremos o «centro»
do Antigo Egipto?

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«A deficiência, por vezes radical, de apetrechamento antropológico e filosófico nos historiadores, é uma das causas da facilidade com que se entregam a diversos tipos de apologética, com os seus respectivos sistemas sofísticos. A sua metodologia também começa, consequentemente, não pelo centro, mas por pontos periféricos que não poucas vezes ignoram o próprio centro – o homem íntegro e profundo.»

António Quadros
In Introdução à Filosofia da História

O Egipto permanece um mistério. O que sabemos sobre o Antigo Egipto não se compara com o muito que desconhecemos. Em termos horizontais quem o diz é o próprio Zahi Hawass, o director do Conselho Supremo de Antiguidades do Egipto: «Eu sempre disse nas minhas conferências que até agora apenas descobrimos 30% dos monumentos egípcios. 70% continuam por debaixo das areias». Mas refiro-me, sobretudo, ao aspecto vertical, à compreensão profunda dos móbiles que levou à plasmação de uma civilização milenar que, em certos campos, ainda hoje não foi ultrapassada.

Mas, mesmo, nos aspectos mais factuais, vale a pena reflectir um pouco como o pensamento livre demora a chegar à ciência.

No avião, tive a oportunidade de folhear a revista da Egyptair, e lá vinha um artigo do mediático arqueólogo egípcio já citado. Ninguém lhe retira valiosos méritos nos contributos que tem dado à egiptologia, nomeadamente quando provou que as pirâmides não foram construídas por escravos, mas por profissionais bem considerados pelo antigo estado egípcio, depois de encontrar e estudar o lugar onde eles viviam, desmantelando assim uma das lendas negras criadas relativamente ao Antigo Egipto. Mas, parafraseando António Quadros, mantém outro sistema sofístico insistindo na proposta irrealista da ciência oficial para a construção dos grandes monumentos egípcios através de métodos manuais com cordas; todos nos lembramos dos célebres desenhos. No seu artigo crítica com razão muitas das asserções de tipo new age, feitos muitas vezes com poucos escrúpulos e com muita maionese (fantasia) à mistura. Porém, isso não quer dizer que a razão esteja no lado oposto do pêndulo. Zahi afirma que mostrou ao jornalista Art Bell, ao vivo, um grupo de trabalhadores a partirem com uma peça de ferro (mas os egípcios não utilizavam o ferro!) um bloco de oito toneladas em dois, que os carregaram depois. Parece que Art Bell ficou convencido, porém, isto é a ciência, a procura da verdade científica acima de quaisquer interesses, substituída pelo «ar do tempo», pelo status quo. Hawass para falar tão categoricamente não nos pode iludir com monólitos e oito toneladas, mas sim com aqueles de 300 toneladas utilizados na Grande Pirâmide que tive a oportunidade de ver hoje mesmo. E o que dizer dos imensos blocos de granito de dezenas de toneladas utilizado no complexo de Gize e trazidos do sul a cerca de 900 kms, facto que também hoje comprovei com um profissional egípcio e com um egiptólogo. Recordemos que em Portugal já foram feitas várias tentativas sem sucesso para demonstrar como se erguiam os monumentos megalíticos.
Fica aqui a pergunta: por que razão não se aceita que não se sabe como foram construídas as pirâmides?

Efectivamente, o encaixe de alguns monólitos do templo antigo junto à Esfinge (ver imagem abaixo) lembra-me a muralha de Micenas e a ciclópica Sacsayhuaman do Peru. Para mim, a versão de Platão narrada no Timeu e no Crítias mantém-se a mais verosímil quando refere a existência de uma excepcional civilização atlante muito anterior às culturas do seu tempo. E donde lhe veio essa informação? Precisamente do Egipto.

Mas passemos ao aspecto vertical. Qual era o objectivo máximo da civilização egípcia? Possivelmente, criar meios para que a alma (Ba) do ser humano se tornasse um ser de luz (akh) e atingisse a barca-dos-milhões-de-anos de Rá, vivesse a Eternidade em Plenitude no mundo espiritual puro. Toda a vida na Terra tinha como objectivo criar condições para que a passagem do Ka (momento que nós chamamos morte) ao Dwat (mundo psíquico ou imaginal regido por Osíris) abrisse grandes oportunidades de vida celeste ao Ser.

Todos estes termos nos podem parecer distantes, mas o nosso coração profundo entende-os. O Egipto antigo é uma cultura por excelência da imaginação simbólica. Quer dizer, para o antigo egípcio era a imaginação abençoada pela luz de Rá que causava os acontecimentos na Terra e não o inverso. Isto é um grande estímulo à actividade criativa da alma. E um ser espiritualmente criativo não entra em depressão nem necessita de Prozac.

Há algo no Egipto que nos escapa, mas que já intuímos. No nosso tempo, conseguimos erguer uma civilização tecnologicamente muito avançada mas perdemos a Ciência de alimentar de Luz o nosso Ba. Perdemos a relação espiritual com a Natureza e com a dimensão simbólica que nos dá acesso a grandes vivências do sagrado. Caminhamos por entre as pirâmides, a qualidade da construção e o seu tamanho esmaga-nos, mas o mais importante é a mensagem que silenciosamente emana dos seus segredos. Alguns princípios dessa ideologia são muito simples, a alma morre ao regressar ao seu túmulo (o corpo físico), pelo que é necessário provocar a regeneração do Ser, acordar a Alma (Ba). Rito que, com certeza, seria praticado no recentemente descoberto túmulo de Osíris no vale de Gize perto da pirâmide de Kefren a 35 metros de profundidade, onde apanhava um braço subterrâneo do Nilo. E era a própria cheia do Nilo que faria o baptismo iniciático ao candidato que se colocava dentro do sarcófago ritual.

Hoje vivi um pouco no Egipto do Império Antigo (3º milénio a. C.), num período onde não se praticavam as inscrições nos templos (isso começou depois da IV dinastia), as suas paredes eram lisas, a geometria sagrada e as conexões astrológicas absorviam o saber destes homens, de um tempo onde a tradição oral era (como sempre foi) a via por excelência da transmissão do conhecimento. O templo mais antigo junto à Esfinge permanece um hino à simplicidade, ciência e sabedoria destes mestres antigos. Os monólitos são enormes vindos do Sul do Egipto, os encaixes perfeitos, as linhas geométricas simples. Virado para o Sol nascente, estava junto a um porto, pois um braço do Nilo chegava a poucas dezenas de metros da Esfinge. O seu chão é de alabastro branco e as colunas e paredes de granito vermelho. O branco horizontal, o leite que alimenta e regenera, o vermelho vertical, o fogo que ilumina ou o sangue que dá a vida espiritual. Mesmo quando a linguagem simbólica se complexiza, a mensagem que oculta é sempre simples e profunda. Mas neste espaço sagrado, tudo era simples e claro. Nele foi encontrada a célebre estátua de Kefren com o falcão sobre os ombros, ou seja, o Ka de Hórus que o protegia e inspirava.

O Museu das Antiguidades Egípcias do Cairo está cheio de autênticas maravilhas que ganham um ambiente especial com a péssima iluminação (lembra-me o caso do também fascinante museu de Heracleon, em Creta). O tesouro de Tutankhamon é realmente do «outro mundo», uma síntese da sabedoria egípcia, um legado para a posteridade. Dentro das centenas de peças encontradas no seu túmulo há um Osíris de madeira, feito para receber ritualmente o limo das cheias do Nilo, símbolo da fertilidade. Face aos sumptuosos tesouros dourados, esta peça de madeira com milhares de anos passa despercebida mas mantém uma energia invulgar. Qualquer um pode colocar a mão por cima e senti-lo. O Egipto continua com infinitos porquês a desafiar-nos.

De regresso ao Vale de Gizé, a temperatura está agradável, o deserto cobre-se com o manto da Luz ocidental. Um raio de luz penetrou hoje no meu coração. Amanhã estarei em Mênfis.

Gizé, 3 de Janeiro de 2009
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2 comentários:

  1. Conhecer o "Centro"...a eterna questão, a busca incessante...
    nem sempre a luz vem de onde se pensa,ou se deseja...
    aceitar que não se sabe é um passo simultaneamente humilde e grandioso.

    Que a magia continue!
    Continuação de boa viagem!

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  2. Estimada «Irmã Espiritual»,

    Agradeço os seus comentários.

    É claro que sem humildade dificilmente se contacta com a verdadeira sabedoria, a «sophia». A meu ver, o «centro» de cada ser humano é o cume da sua pirâmide interior. Assim, não importa quem, ou o quê, que nos desperta esse ponto de conscîência que nos corresponde por evolução, mas sim que o melhor de cada um de nós acorde e emerja. Nesta perspectiva, só a partir daí será verdadeiramente possível encontrar uma direcção coerente para a vida com espiritualidade em harmonia com a noção de serviço à Humanidade.

    Mas no post, eu referia-me aos arquétipos que formaram a Alma a milenar civilização egípcia. Quais foram?

    Naturalmente, que tudo isso tem eco na Alma humana. Hoje vivi isso mesmo no interior da Pirâmide Vermelha (Sacará).

    Uma saudação amiga,

    Paulo Loução

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