sábado, 4 de maio de 2013

«A Arte de Ser Cavaleiro» de Augusto Casimiro



[Palavras que nos alimentam a alma:]

Não te humilhes de remorsos, lembrando o passado. Exalta-te dia a dia. Viver é ser cada vez mais forte, mais justo e mais puro.

Sorri à Morte sempre que adivinhares.

Vive entre sugestões e desejos heróicos, à flor da tua Alma. Embriaga-te no desejo de te superares. Arde na irrequietude de uma grande sonho. Não sucumbas diante das realidades quotidianas. Sê a excepção. Vive na minoria.

Sê bom, generoso, piedoso. E sê forte. Ao serviço de uma causa justa toda a força é linda.

Penetra, do teu coração, as misérias e a beleza. Domina-as, comanda em ti mesmo.

Não te escravizes, do passado, a qualquer má lembrança. Para ti, do passado, existem somente as coisas belas.

Sobe, correndo, a cada cimo.

Não vivas um dia sem uma vitória. Vence-te e aos outros… Aos que ofendem, limitam, a beleza da Vida.

Que ao meio de todos os desastres a tua consciência seja a tua consolação.

Faz do teu orgulho uma torre de menagem a que subam crianças.

A vida está cheia de cárceres, tentando-nos, alegrias, honras, poderio, falsas glórias que são algemas. Foge de todas elas. Defende a tua fortaleza. Torna-te invencível.

Evoca os teus mortos, os grandes da tua Pátria e do mundo. Pergunta-lhes o sonho com que modelaram destinos. Adivinha a porção de divindade que lhes imortalizou os gestos e as façanhas, o esforço que neles preparou, conquistou o Futuro.
Procura entendê-los, continuá-los, servi-los.
A eternidade dos mortos é o seu poder amorável, criador, ao serviço do mundo, quebrando algemas, revelando, preparando o Amanhã.

Ama a tua Pátria de um amor incapaz de crimes. Não disperses o teu amor fazendo-te sectário.

Não te demores a ouvir falar cadáveres.
Os que tentam limitar o divino poder da tua mocidade, prendendo-te ao passado, são cadáveres fazendo a apologia da morte.
Na tua Pátria há uma tradição apenas, a dos actos supremos dos seus príncipes, – guerreiros, poetas, sábios, cavadores, marinheiros, santos, – símbolos da raça, através de fórmulas cada vez mais livres realizando ventura, enriquecendo a vida, servindo o Universo e a Pátria… Forças de Deus apressando as jornadas dos nossos destinos.

Há homens que trazem no peito, morto de miséria e erro político, o próprio coração, sem o saber. Vivem, tentam viver, raciocinando a negação da divindade da Vida. Os seus credos guardam-lhes os interesses inferiores, negam, afrontam o poder criador que a vida em si leva, justificam-lhes a incapacidade religiosa. São mais ódio que amor. Vencidos inglórios. O oceano da Vida rola as ondas longe das suas praias. Querem lançar-vos no peito e às mãos cadeias feitas de esqueletos, e erguer, em cada alma, um cárcere.
São os pigmeus procurando travar os passos do gigante. Sepulcros… Blasfémias na noite silenciosa sob o luar indiferente.

A vida é cheia de misérias, egoísmos, invejas. Ser grande, ser forte, ser puro, até exercer domínio, – é ser a excepção. E a massa odeia as excepções. Resiste! Resiste! Sê implacável. Impõe-te.

Nunca fiques indiferente diante de uma injustiça. Não cales nunca a voz com que se acusa um crime. Nem o gesto que aniquila um mal. Que nenhuma lágrima alheia deixe de comover-te.

Ser forte é ser impoluto.

Vive com alegria!

Tem o horror das faltas inconfessadas. Arranca aos outros, sempre, confessando-as, o argumento com que poderão atacar-te.

Não receies exílios, hostilidades, perseguições ou ódios. Os homens fracos costumam, por eles, tentar a escravidão dos que lhe são superiores. Nada receies. Segue o teu caminho. Vencerás assim.

Toma consciência da tua responsabilidade face a Deus e a ti mesmo. E que nada, frente ao acto belo e necessário, – nada! – te faça recuar.

Só os covardes e os maus hesitam nas horas grandes. Os iluminados por uma fé ou um culto, obedecendo à vida, seus escravos para ventura maior do Mundo, - encontram sempre a justificação perfeita das violências necessárias e redentoras.

Inverte o natural egoísmo do teu ser. Em vez de segurança inveja o perigo. Inveja as mortes belas.

Vela as armas longamente, longe dos homens e no silêncio. Despe-te de ambições transitórias. Couraça-te de orgulho eterno. Se és cavaleiro, e eleito da Vida, ambições e egoísmos, para ti, serão como odres vazios… Fortalece-te no sacrifício, exalta-te, prepara as tuas armas para o supremo embate, torna-te invulnerável… Depois serena… A tua hora chegará, a exigir-te, a implorar-te… Dá-te sem delírios inúteis, entrega-te como se fosses para o Calvário… – «Que a vontade de Deus se cumpra em mim!...»

Que o amor do Futuro seja, em ti, uma fogueira ardendo. Serve, nele, o sentido da Vida e o interesse mais puro dos homens. Liberta-te do momento que passa tornando-te melhor e diminuindo a dor inútil ao Mundo e contrária à Vida. São os interesses sem alma que levam o homem a negar o Amanhã.

A redenção dos homens faz-se através das Vidas eleitas que se ergueram à Montanha. Vive! e que cada hora vivida seja em ti e para a Humanidade, um resgate, mais bela, mais feliz e mais livre que a anterior.

Os que se batem pelo futuro do Mundo são os Cristos da nova Idade.

Que a tua ventura dimane sempre, antes de tudo, da ventura dos outros.

Que o teu olhar nunca se aparte do Oriente, nem a tua alma se desinteresse das auroras por nascer…

Anseia infinitamente, como a Vida, as transformações, os libertadores avatares que revelam e exaltam as forças divinas que nela estão como um tesoiro oculto.

E que nem a memória de um velho valor te escravize, nem o amor do passado seja, em ti, a hipocrisia do teu horror ao Futuro.

Sê da Vida e de Deus! Que uma única lei te comande: - a da tua comunidade com o mundo, com todas as coisas, seres e almas, na grande ramagem, cada vez mais pura, cada vez mais livre, mais próxima de Deus!
In Augusto Casimiro (1889-1967), Obra Poética

As Raízes Históricas da Nossa Crise Ecológica (Lynn White, Jr.)


Publico aqui, traduzido, o artigo histórico do sacerdote e historiador Lynn White, escrito há quase cinquenta anos, merece reflexão. O problema ecológico instiga-nos a uma profundo introspecção quanto à nossa relação com a Natureza, sabendo que dela somos parte integrante e não exógenos. Há que reencontrar o espírito de solidariedade cósmica do homem arcaico, fomentar uma relação espiritual com a Natureza.

Ter uma conversa com Aldous Huxley era frequentemente sinónimo de assistirmos a um monólogo inesquecível. Cerca de um ano antes de ter morrido, acontecimetno lamentável, discorria sobre o seu tópico favorito: a forma nada natural de o Homem tratar a Natureza e os infelizes resultados que daí decorrem. Para ilustrar o seu ponto de vista, contou como, no Verão anterior, havia regressado a um pequeno vale em Inglaterra onde passara muitos e felizes meses quando era criança. Outrora o vale fora formado por maravilhosas clareiras de erva; agora, estava repleto de moitas selvagens e feias porque os coelhos que anteriormente mantinham o crescimento do mato controlado haviam sucumbido em grande número a uma doença, a mixomatose, que foi introduzida propositadamente pelos agricultores locais para reduzir a destruição das colheitas provocada pelos coelhos. Tendo algo em mim de Filisteu, não pude ficar calado durante mais tempo, mesmo no interesse da grande retórica. Interrompi para salientar o facto de o próprio coelho ter sido trazido como animal doméstico para a Inglaterra em 1176, supostamente para melhorar a dieta proteica da classe camponesa.

Todas as formas de vida modificam os meios onde se encontram. O exemplo mais espectacular e benigno é indubitavelmente o pólipo de coral. Servindo os seus próprios interesses, criou um vasto mundo subaquático favorável a milhares de outras espécies de animais e plantas. O homem, desde que se tornou numa espécie numerosa, afectou de forma considerável o seu meio ambiente. A hipótese de que um dos seus métodos de caça, aquele em que usava o fogo para fazer sair os animais do meio da vegetação, deu origem às grandes pradarias do mundo e ajudou a exterminar, de grande parte do globo, os enormes mamíferos do Pleistoceno é plausível, se é que não foi já provada. Há pelo menos seis milénios que as margens norte do Nilo têm sido um artefacto humano em vez da selva pantanosa africana que a Natureza, não fosse o homem, pretendia que fosse. A Barragem Assuão, que submerge uma área de 5.000 milhas quadradas [aproximadamente 12.900 quilómetros quadrados], é a mais recente fase de um longo processo. Em muitas regiões, as técnicas de construção em terraço ou de irrigação, o pastoreio excessivo, o abate de florestas pelos Romanos para construir navios para lutar contra os Cartagineses ou pelos Cruzados para resolver os problemas logísticos das suas expedições, alteraram profundamente algumas ecologias. A observação de que a paisagem francesa se dividia em dois tipos básicos, os campos abertos do norte e o arvoredo das zonas sul e oeste, inspirou Marc Bloch a empreender o seu estudo clássico sobre os métodos agrícolas medievais. De forma muito pouco intencional, as mudanças dos costumes humanos afectam frequentemente a natureza não-humana. Note-se, por exemplo, que o advento do automóvel eliminou os grandes bandos de pardais que outrora se alimentavam dos excrementos de cavalo que poluíam as ruas.

A história da mudança ecológica é ainda tão rudimentar que sabemos muito pouco sobre o que realmente aconteceu, ou quais foram os seus resultados. A extinção dos auroques europeus numa data tão tardia como 1627 parece ter sido um simples caso de caça excessiva. Em assuntos mais complicados, é frequentemente impossível encontrar informações concretas e fiáveis. Os Frísios e os Holandeses têm estado a impedir o avanço do Mar do Norte ao longo de, pelo menos, mil anos, e o processo está a culminar nos nossos dias com a conquista ao mar do golfo Zuider Zee. Que espécies, se é que algumas, de animais, pássaros, peixes, vida costeira ou de plantas morreram neste processo? No combate épico que travam com Neptuno, será que os Neerlandeses negligenciaram os valores ecológicos a ponto de afectar a qualidade da vida humana nos Países Baixos? Tanto quanto sei, estas perguntas nunca foram feitas, muito menos respondidas.

As pessoas têm, pois, sido frequentemente um elemento dinâmico no seu próprio meio ambiente, mas, no estado actual da aprendizagem histórica, é habitual não sabermos exactamente quando, onde ou com que efeitos se produziram as mudanças induzidas pelo homem. Contudo, ao entrarmos no último terço do século XX, a preocupação com os efeitos ecológicos adversos está a crescer desmesuradamente. A ciência natural, concebida como o esforço por compreender a natureza das coisas, floresceu em várias eras e junto de vários povos. Da mesma forma, deu-se a acumulação de antigas aptidões tecnológicas, que umas vezes cresceram rapidamente, outras lentamente. Mas foi apenas há cerca de quatro gerações que a Europa Ocidental e a América do Norte conseguiram arranjar um casamento entre a ciência e a tecnologia; a união entre as abordagens teórica e empírica ao nosso meio ambiente natural. A emergência da prática generalizada do credo de Francis Bacon, segundo o qual o conhecimento científico significa poder tecnológico sobre a Natureza, praticamente não pode ser datada antes de 1850, excepção feita às indústrias químicas, onde esta já se efectuava no século XVIII. A sua aceitação como um padrão normal de acção pode marcar o maior acontecimento da história humana desde a invenção da agricultura, e possivelmente também da história terrestre não-humana.

A nova situação forçou, quase de imediato, a cristalização do mais recente conceito de ecologia; de facto, a palavra ecologia apareceu pela primeira vez na língua inglesa em 1873. Hoje, menos de um século mais tarde, a força do impacto da nossa raça no meio ambiente cresceu tanto que mudou na essência. Quando foram disparados os primeiros canhões, no início do século XIV, estes afectaram a ecologia ao enviarem trabalhadores para as florestas e montanhas no intuito de procurarem mais potassa, enxofre, minério de ferro e carvão vegetal, advindo daí alguma erosão e desflorestação. As bombas de hidrogénio estão num patamar totalmente diferente: uma guerra travada com elas pode alterar a genética de toda a vida existente neste planeta. Por volta de 1285, Londres já enfrentava o problema do smog, resultante da queima de linhite, mas a actual combustão de combustíveis fósseis que o homem faz ameaça mudar a química da atmosfera do globo como um todo, com consequências que só agora começamos a vislumbrar. O certo é que, com a explosão populacional, o carcinoma do urbanismo não planeado, o que agora são depósitos geológicos de detritos e lixo, nenhuma outra criatura para além do homem conseguiu estragar e contaminar o seu ninho tão rapidamente.

Já foram feitos muitos apelos à acção, mas as propostas específicas que surgiram, por muito meritórias que sejam individualmente, parecem ser demasiado parciais, paliativas, negativas: banir a bomba, deitar abaixo os quadros para afixar cartazes, dar aos Hindus contraceptivos e dizer-lhes que comam as vacas sagradas. A solução mais simples para qualquer mudança suspeita é, evidentemente, acabar com ela; ou melhor ainda, remeter para um passado romantizado: fazer com que as horríveis bombas de gasolina se pareçam com uma das cabanas de Anne Hathaway ou (no Faroeste) com bares de cidades-fantasma. A mentalidade “área selvagem” defende invariavelmente, seja em San Gimignano ou em High Sierra, o regresso estático a uma ecologia que existia antes de o primeiro lenço de papel ter sido deitado fora. Mas, nem o atavismo nem a petrificação conseguirão resolver a crise ecológica dos nossos tempos.

O que fazer? Ainda ninguém sabe. Se não pensarmos sobre o que é fundamental, as medidas específicas que tomamos poderão produzir novos efeitos nocivos; efeitos ainda mais graves do que aqueles que deveriam remediar.

Para começar, devíamos tentar clarificar a nossa forma de pensar olhando, com alguma profundidade histórica, para os pressupostos que estão subjacentes à tecnologia e ciência modernas. A ciência era tradicionalmente aristocrática, especulativa, intelectual no seu propósito; a tecnologia era da classe baixa, empírica e orientada para a acção. A rápida fusão de ambas, em meados do século XIX, está seguramente relacionada com as revoluções democráticas contemporâneas, embora ligeiramente anteriores, que, para reduzir as barreiras sociais, tiveram tendência a defender uma unidade funcional entre o cérebro e a mão. A nossa crise ecológica é o produto de uma cultura democrática emergente e totalmente nova. A questão que se coloca é saber se um mundo democratizado consegue sobreviver às suas próprias implicações. Presumivelmente não consegue, a não ser que repensemos os nossos axiomas.

As Tradições Ocidentais da Tecnologia e da Ciência

Há uma coisa tão evidente que chega mesmo a parecer estúpido verbalizá-la: tanto a tecnologia moderna como a ciência moderna são distintamente ocidentais. A nossa tecnologia absorveu elementos de todas as partes do mundo, nomeadamente da China, porém, um pouco por todo o lado, seja no Japão ou na Nigéria, a tecnologia de sucesso é ocidental. A nossa ciência foi herdeira de todas as ciências do passado, talvez em especial do trabalho dos grandes cientistas islâmicos da Idade Média, que tão frequentemente suplantavam os antigos Gregos em aptidão e perspicácia: al-Razi na medicina, por exemplo; ou ibn-al-Haytham na óptica; ou Omar Khayyam na matemática. De facto, não foram poucas as obras de génios como estes cujos originais árabes parecem ter desaparecido, sobrevivendo apenas as traduções medievais em latim que ajudaram a lançar as bases dos progressos ocidentais posteriores. Hoje em dia, no mundo inteiro, toda a ciência importante é ocidental, tanto em estilo como em método, seja qual for a pigmentação ou a língua dos cientistas.

Um segundo par de factos é bem menos conhecido porque resulta de uma aprendizagem história bastante recente. A liderança ocidental, tanto em termos de tecnologia como de ciência, é muito mais antiga do que a chamada Revolução Industrial do século XVIII. Estes termos estão de facto fora de moda e obscurecem a verdadeira natureza daquilo que tentam descrever -- fases significativas em dois longos e separados desenvolvimentos. No ano 1000 d.C., no máximo -- talvez mesmo, embora de forma não muito convincente, 200 anos antes desta data -- o Ocidente começou a utilizar o poder da água noutros processos industriais para além da moagem de cereais. A isto seguiu-se, em finais do século XII, o domínio e o aproveitamento do poder do vento. Foi com passos modestos, mas também com uma notável consistência de estilo, que o Ocidente expandiu rapidamente as suas técnicas para desenvolver maquinaria eléctrica, aparelhos que não requeriam tanto trabalho manual e a automação. Aqueles que duvidam devem contemplar um dos mais monumentais feitos da história da automação: o relógio mecânico de pesos, que apareceu em dois formatos no início do século XIV. Não em termos da arte do artífice mas em termos da capacidade tecnológica básica, o Ocidente latino dos finais da Idade Média suplantava largamente as culturas bizantina e islâmica, caracterizadas pela sua complexidade, sofisticação e magnificência estética. Em 1444, um grande eclesiástico grego, Bessarion, que fora para Itália, escreveu uma carta a um príncipe na Grécia. Ele estava surpreendido com a superioridade dos navios, das armas, dos têxteis e do vidro ocidentais. Mas, acima de tudo, ele estava espantadíssimo com o espectáculo proporcionado pelas rodas movidas a água que serravam madeiras e accionavam os foles dos altos-fornos. É mais do que evidente que ele nunca tinha visto nada que se assemelhasse no Próximo Oriente.

Em finais do século XV, a superioridade tecnológica da Europa era de tal ordem que as pequenas nações que a constituíam, mutuamente hostis, podiam espraiar-se sobre resto do mundo, conquistando, saqueando e colonizando. O símbolo desta superioridade tecnológica é o facto de Portugal, um dos estados mais fracos do Ocidente, ter sido capaz de se tornar, e de se manter durante um século, dono e senhor das Índias orientais. E não devemos esquecer-nos que a tecnologia de Vasco da Gama e de Albuquerque foi criada a partir do empirismo puro, indo buscar muito pouca inspiração ou apoio à ciência.

Na compreensão vernaculista do presente, a ciência moderna começou supostamente em 1543, quando Copérnico e Vesalius publicaram as suas grandes obras. Contudo, os seus feitos não ficam diminuídos se salientarmos que estruturas como a Fabrica e De revolutionibus não apareceram da noite para o dia. De facto, a distintiva tradição ocidental científica começou no final do século XI com um colossal movimento de tradução para latim das obras científicas árabes e gregas. Alguns livros notáveis -- como por exemplo, Theophrastus -- escaparam ao ávido e novo apetite ocidental pela ciência, mas não passaram mais de 200 anos para que, efectivamente, todo o acervo de ciência grega e muçulmana ficasse disponível em latim e fosse sofregamente lido e criticado nas novas universidades europeias. Da crítica adveio nova observação, especulação e uma crescente desconfiança em relação àqueles que em tempos antigos eram a autoridade. Em finais do século XIII, a Europa apoderara-se da liderança científica global, tendo-a retirado das débeis mãos do Islão. Seria tão absurdo negar a profunda originalidade de Newton, Galileu ou Copérnico como negar a originalidade de cientistas escolásticos como Buridan ou Oresme, cujas obras no século XIV serviram de base aos primeiros. Antes do século XI, a ciência era praticamente inexistente no Ocidente latino, mesmo nos tempos romanos. Do século XI para a frente, o sector científico da cultura ocidental tem vindo a crescer a um ritmo constante.

Parece que não conseguimos compreender a natureza ou o impacto presente na ecologia dos nossos dois movimentos, tecnológico e científico, desde que estes tiveram início, adquiriram o seu carácter e conseguiram alcançar o domínio mundial na Idade Média, sem antes analisarmos os pressupostos e progressos medievais fundamentais.

A Visão Medieval do Homem e da Natureza

Até há pouco tempo atrás, a agricultura foi sempre a principal ocupação das sociedades, mesmo das mais "avançadas"; daí que qualquer alteração nos métodos da lavoura tenha grande importância. Os primeiros arados, puxados por pares de bois, não conseguiam normalmente revolver a terra, limitavam-se a remexer a superfície. Assim, tornava-se necessário fazer um cruzamento de aragens e os campos tendiam a ser quadrados. Esta técnica funcionava bem nos solos relativamente leves e nos climas semi-áridos do Próximo Oriente e do Mediterrâneo, mas era inapropriada para os climas húmidos e para os solos frequentemente viscosos do norte da Europa. Contudo, perto do fim do século VII d.C., no seguimento de inícios um tanto obscuros, alguns camponeses do norte começaram a usar uma forma totalmente nova de arado, equipado com uma lâmina vertical que abria facilmente a linha do sulco, uma parte horizontal que cortava o solo por baixo e uma aiveca para revirar a terra. A fricção deste arado no solo era tão grande que, normalmente, eram necessários oito bois em vez de dois. A forma como atacava o solo era de tal maneira violenta que deixou de ser necessário o cruzamento de aragens, havendo tendência para os campos se alongarem em comprimento e ficarem com o aspecto de longas faixas de terreno arado.

Nos dias do arado de cunha simples, os campos estavam geralmente distribuídos em unidades capazes de sustentar uma única família. A agricultura de subsistência era a norma. Mas não havia camponês que possuísse oito bois: para usar o novo arado, muito mais eficiente, os camponeses juntavam os seus bois para formar grandes equipas de aragem, recebendo originalmente (ao que tudo indica) faixas aradas na proporção da sua contribuição. Assim, a distribuição da terra deixou de se basear nas necessidades de uma família, passando antes a basear-se na capacidade de uma máquina que lavrasse a terra. A relação do homem com o solo foi profundamente alterada: inicialmente o homem fizera parte da Natureza; agora era o explorador da Natureza. Em mais nenhuma parte do mundo se verificou por parte dos agricultores o desenvolvimento de qualquer outro implemento agrícola análogo. Será uma coincidência que tecnologia moderna, com a sua abordagem impiedosa face à Natureza, tenha sido em grande medida produzida pelos descendentes destes camponeses do norte da Europa?

Esta mesma atitude aproveitadora encontra-se bem patente nos calendários ilustrados ocidentais pouco antes de 830 d.C. Em calendários anteriores, os meses eram representados por personificações passivas. Os novos calendários francos, que pautaram o estilo para a Idade Média, eram muito diferentes: mostravam homens a coagir o mundo que os rodeava -- arando, fazendo colheitas, cortando árvores, matando porcos. O homem e a Natureza eram duas coisas distintas, e o homem dominava.

Estas novidades parecem estar em harmonia com alguns padrões intelectuais mais vastos. A forma como as pessoas tratam a ecologia depende da forma como percepcionam a sua relação com as coisas que as rodeiam. A ecologia humana está profundamente condicionada pelas nossas crenças face à Natureza e ao destino -- ou seja, pela religião. Do ponto de vista dos ocidentais, este facto é muito evidente, digamos, na Índia ou no Ceilão. Mas é igualmente verdadeiro quando aplicado a nós e aos nossos antepassados medievais.

A vitória do Cristianismo sobre o paganismo foi a maior revolução psíquica na história da nossa cultura. Hoje, tornou-se moda dizer que, para o bem ou para o mal, vivemos na “era pós-Cristã”. É certo que as nossas formas de pensamento e a nossa linguagem deixaram em grande medida de ser cristãs, mas, do meu ponto de vista, a substância mantém-se muitas vezes, e de forma surpreendente, muito próxima da do passado. Por exemplo, os nossos hábitos quotidianos são dominados por uma fé implícita no progresso contínuo, que era algo desconhecido tanto para a Antiguidade greco-romana como para o Oriente. Esta fé está bem enraizada, e é indefensável para além da teologia judaico-cristã. O facto de os comunistas partilharem essa fé vem simplesmente ajudar a reforçar aquilo que pode ser demonstrado com base em muitos outros fundamentos: que o Marxismo, tal como o Islão, é uma heresia judaico-cristã. Hoje em dia, continuamos em grande medida a viver, tal como o fazemos há cerca de 1700 anos, num contexto de axiomas cristãos.

O que disse o Cristianismo às pessoas sobre as relações destas com meio ambiente? Enquanto muitas das mitologias do mundo apresentam histórias da criação, a mitologia greco-romana foi singularmente incoerente a este respeito. Tal como Aristóteles, os intelectuais do Ocidente antigo negaram que o mundo visível tivesse um começo. De facto, a ideia de um começo era impossível no enquadramento da sua noção cíclica do tempo. Numa perspectiva diametralmente oposta, o Cristianismo herdou do Judaísmo não apenas um conceito de tempo não-repetitivo e linear, mas também uma impressionante história sobre a criação. Em fases graduais, um Deus afectuoso e todo-poderoso criou a luz e a escuridão, os corpos celestes, a terra e todas as suas plantas, animais, pássaros e peixes. Por fim, Deus criou Adão e, como resultado de uma reflexão posterior, Eva, para evitar que o homem se sentisse sozinho. O homem deu nome a todos os animais, estabelecendo assim o seu domínio sobre eles. Deus planeou tudo isto expressamente para benefício do homem e para que este dominasse: nenhum item da criação física tinha outro propósito senão servir os propósitos do homem. E, embora o corpo do homem seja feito de barro, ele não é simplesmente parte da Natureza: ele é feito à imagem de Deus.

O Cristianismo, especialmente na sua forma ocidental, é a religião mais antropocêntrica que o mundo alguma vez teve ocasião de testemunhar. Numa data tão remota como o século II, tanto Tertualiano como o santo Irineu de Lião insistiam que Deus, quando moldou Adão, estava a prenunciar a imagem do Cristo incarnado, o Segundo Adão. Em grande medida, o homem partilha com Deus a transcendência da Natureza. O Cristianismo, contrastando totalmente com o Paganismo antigo e com as religiões asiáticas (excepto, talvez, o Zoroastrismo), não se limitou a estabelecer um dualismo entre o homem e a Natureza, insistiu ainda que é a vontade de Deus que o homem se aproveite da Natureza para atingir os seus próprios fins.

Ao nível das pessoas comuns, o resultado disto foi muito interessante. Na Antiguidade, cada árvore, cada nascente, cada ribeiro, cada colina tinha o seu próprio genius loci, o seu espírito guardião. Os homens tinham acesso a estes espíritos, mas estes últimos eram muito diferentes dos homens: centauros, faunos e sereias mostram bem a sua ambivalência. Antes de alguém cortar uma árvore, de exercer a actividade mineira numa montanha ou de represar um riacho, era importante aplacar o espírito responsável por aquela situação, e mantê-lo aplacado. O Cristianismo, ao destruir o animismo pagão, fez com que fosse possível tirar proveito da Natureza numa atmosfera de indiferença para com os sentimentos dos objectos naturais.

Diz-se frequentemente que a Igreja substituiu o animismo pelo culto dos santos. É verdade; mas o culto dos santos é funcionalmente bastante diferente do animismo. O santo não se encontra nos objectos naturais; pode ter altares especiais, mas a sua cidadania está no céu. Para além disso, um santo é totalmente um homem; pode ser abordado em termos humanos. A juntar aos santos, o Cristianismo também tinha, claro, os anjos e demónios herdados do Judaísmo, e talvez noutro grau, do Zoroastrismo. Mas estes eram tão móveis como os próprios santos. Os espíritos dos objectos naturais, que outrora haviam protegido a Natureza do homem, evaporaram-se. O monopólio efectivo do homem sobre o espírito neste mundo estava confirmado, e as velhas inibições face à exploração abusiva da natureza ruíram.

Quando se fala em termos tão generalizados, é necessário introduzir uma nota de aviso. O Cristianismo é uma fé complexa, e as suas consequências diferem consoante os diferentes contextos. Aquilo que referi pode aplicar-se perfeitamente ao Ocidente medieval, onde a tecnologia registou efectivamente avanços espectaculares. Mas, o Oriente grego, um reino altamente civilizado com igual devoção cristã, parece não ter produzido qualquer inovação tecnológica de relevo após o final do século VII, altura em que o fogo grego foi inventado. A chave deste contraste pode talvez ser encontrada nas diferenças de tonalidade que os estudantes de teologia comparativa encontram entre as Igrejas grega e latina no que se refere à piedade e ao pensamento. Os Gregos acreditavam que o pecado era uma cegueira intelectual e que a salvação se encontrava na iluminação, na ortodoxia -- ou seja, no pensamento esclarecido. Por outro lado, os Latinos consideravam que o pecado era um mal moral e que a salvação se encontrava numa conduta correcta. A teologia oriental tem sido intelectualista. A teologia ocidental tem sido voluntarista. O santo grego contempla; o santo ocidental age. As implicações do Cristianismo face à conquista da Natureza emergiriam muito mais facilmente na atmosfera ocidental.

O dogma cristão da criação, que pode ser encontrado na parte inicial de todos os credos, tem ainda outro significado para a nossa compreensão da crise ecológica actual. Por meio de uma revelação, Deus deu ao homem a Bíblia, o Livro da Escritura. Mas, uma vez que Deus havia feito a Natureza, esta também teria de evidenciar a mentalidade divina. O estudo religioso da Natureza com o intuito de se conseguir uma melhor compreensão de Deus ficou conhecido como teologia natural. Nos primórdios da Igreja, e sempre no Oriente grego, a Natureza era concebida em primeira instância como um sistema simbólico através do qual Deus falava ao homem: a formiga é um sermão para os preguiçosos; a ascensão das chamas é símbolo da aspiração da alma. A visão da Natureza era essencialmente artística, não científica. Enquanto Bizâncio preservava e copiava grandes quantidades de textos científicos gregos antigos, era muito pouco provável que a ciência, tal como a concebemos, conseguisse florescer em semelhante ambiente.

Contudo, no Ocidente latino, no início do século XIII, a teologia natural seguia um rumo completamente diferente. Deixava de ser a descodificação dos símbolos físicos da comunicação divina com o homem para se tornar no esforço em compreender a mente de Deus através da descoberta de como funcionava a sua criação. O arco-íris já não era apenas um símbolo de esperança enviado por Noé depois do Dilúvio: Robert Grosseteste, o Frade Roger Bacon e Teodorico de Friburgo produziram obras assustadoramente sofisticadas sobre a óptica do arco-íris, mas fizeram-no em prol da compreensão religiosa. Do século XIII em diante, até chegarmos a Leitnitz e Newton, inclusive, todos os grandes cientistas explicaram as suas motivações em termos religiosos. De facto, Galileu, se não tivesse sido um perito tão grande para um mero teólogo amador, teria com certeza arranjado muito menos complicações para si: os profissionais levaram a mal a sua intrusão. E, ao que tudo indica, Newton considerava-se mais um teólogo do que um cientista. Só em finais do século XVIII é que a hipótese de Deus se tornou desnecessária para muitos cientistas.  

Para o historiador, torna-se muitas vezes difícil julgar os homens quando estes explicam porque estão a fazer aquilo que querem fazer, estejam eles a apresentar razões verdadeiras ou razões meramente aceitáveis do ponto de vista cultural. A coerência com que os cientistas disseram, durante os longos séculos de formação da ciência ocidental, que a tarefa e a recompensa do cientista era “pensar os pensamentos de Deus depois dele”, leva-nos a acreditar que esta era mesmo a sua real motivação. Sendo assim, o molde da ciência ocidental moderna tem uma matriz de teologia cristã. E o que lhe deu ímpeto foi o dinamismo da devoção religiosa moldado pelo dogma judaico-cristão da criação.

Uma Visão Cristã Alternativa

Tudo indica que nos encaminhamos para conclusões algo desagradáveis para muitos cristãos. Uma vez que as palavras ciência e tecnologia são palavras abençoadas no nosso vocabulário contemporâneo, há quem possa estar contente, de um ponto de vista histórico, com as noções de que, primeiro, a ciência moderna é uma extrapolação da teologia natural, e segundo, de que a tecnologia moderna pode ser explicada, pelo menos em parte, como uma concretização ocidental e voluntarista do dogma cristão da transcendência do homem face à Natureza, e do seu domínio sobre esta. Mas, como agora reconhecemos, há pouco mais de um século, a ciência e a tecnologia -- até então actividades bastante separadas -- juntaram-se para dar poderes à humanidade que, a julgar por muitos dos efeitos ecológicos, estão fora de controlo. Sendo esse o caso, o Cristianismo carrega um fardo muito grande em termos de culpa.

Pessoalmente, duvido que os desastrosos efeitos nocivos ecológicos possam ser evitados através da simples aplicação de mais ciência e mais tecnologia aos nossos problemas. A nossa ciência e a nossa tecnologia já não se enquadram nas atitudes cristãs face à relação do homem com a Natureza, atitudes essas que são defendidas não só pelos cristãos e neo-cristãos mas também por aqueles que carinhosamente se consideram pós-cristãos. Não obstante Copérnico, todo o cosmos gira em torno do nosso pequeno globo. Não obstante Darwin, nós não somos, no fundo, parte do processo natural; somos superiores à Natureza, temos para com ela um sentimento de desprezo, queremos usá-la para satisfazer os nossos caprichos, quaisquer que sejam. O recém-eleito Governador da Califórnia, um homem do clero tal como eu, mas muito menos preocupado, falou em prol da tradição cristão quando disse (como se alega) "depois de vermos uma sequóia, já vimos todas”. Para um cristão, uma árvore não pode ser mais do que um facto físico. Todo o conceito do bosque sagrado não tem lugar no Cristianismo nem no sistema de valores ocidental. Ao longo de quase dois milénios, os missionários cristãos têm vindo a deitar abaixo bosques sagrados, porque estes, ao assumirem espírito na Natureza, são idólatras.

Aquilo que fazemos quanto à ecologia depende das nossas ideias sobre a relação homem-natureza. Mais ciência e mais tecnologia não nos vão fazer sair da presente crise ecológica até encontrarmos uma nova religião, ou até repensarmos a velha. Os beatniks, que são basicamente os revolucionários dos nossos dias, mostram ter um bom instinto na sua afinidade com o Budismo Zen, que concebe uma relação homem-natureza muito aproximada, quase uma imagem reflectida, da visão cristã. Contudo, o Budismo Zen está tão profundamente condicionado pela história asiática como o Cristianismo está pela experiência ocidental, e tenho dúvidas quanto à sua viabilidade entre nós.

Talvez devêssemos ponderar o maior radical na história cristã desde Cristo: São Francisco de Assis. O principal milagre de São Francisco foi o facto de não ter morrido queimado, como aconteceu a muitos dos seus seguidores de esquerda. Ele era tão claramente herético que um General da Ordem franciscana, São Boaventura, um grande e perspicaz cristão, tentou suprimir as primeiras ocorrências de franciscanismo. A chave para compreendermos São Francisco é a sua crença na virtude da humildade -- não apenas em relação ao indivíduo mas em relação ao homem enquanto espécie. São Francisco tentou depor o homem da sua monarquia face à criação e estabeleceu uma democracia para todas as criaturas de Deus. Com ele, a formiga deixa de ser apenas uma homília para os preguiçosos, as chamas deixam de ser um sinal revelador da confiança da alma ir ao encontro da união com Deus; agora, são a Irmã Formiga e a Irmã Chama, que louvam o Criador da maneira que podem, tal como o Irmão Homem também o louva de sua maneira.

Comentadores de épocas posteriores afirmaram que São Francisco pregava aos pássaros como censura para com os homens que não queriam ouvir. A história não reza assim: ele rogou aos passarinhos que louvassem Deus e, num êxtase espiritual, eles bateram as asas e chilrearam de contentamento. Há muito que as lendas de santos, especialmente de santos irlandeses, contavam as interacções destes com os animais, mas acredito que o fizessem tendo sempre como objectivo mostrar o domínio humano sobre as criaturas. Com São Francisco é diferente. A terra em redor de Gubbio, nos Apeninos, era assolada por um temível lobo. Diz a lenda que São Francisco falou com o lobo e fê-lo ver o seu erro. O lobo arrependeu-se, morreu no odor da santidade e foi enterrado em chão sagrado.

Aquilo a que Sir Steven Ruciman chama "a doutrina franciscana da alma animal" foi rapidamente extinto. Muito possivelmente, inspirava-se em parte, consciente ou inconscientemente, na crença da reincarnação dos heréticos cátaros, que na altura abundavam na Itália e no sul da França e que, presumivelmente, a tinham ido buscar originalmente à Índia. É significativo que nesse preciso momento, cerca do ano 1200, também se tenham encontrado vestígios de metempsicose no Judaísmo ocidental, na Cabala provençal. Mas São Francisco não estava ligada nem à transmigração das almas nem ao panteísmo. A sua visão da Natureza e do homem assentava numa espécie única de pan-psiquismo de todas as coisas animadas e inanimadas, concebido para a glorificação do seu transcendente Criador, que, num derradeiro gesto de humildade cósmica, foi carne, esteve indefeso deitado numa manjedoura e morreu pendurado num cadafalso.

Não estou a sugerir que muitos dos Americanos contemporâneos que estão preocupados com a nossa crise ecológica sejam capazes ou estejam dispostos a aconselharem-se com lobos nem a exortarem os pássaros. Contudo, a actual e crescente perturbação do meio ambiente global é o produto de uma tecnologia e ciência dinâmicas que estavam a aparecer no mundo ocidental medieval e contra as quais São Francisco se rebelava de forma tão original. O seu crescimento não pode ser entendido, em termos históricos, separadamente das atitudes distintivas face à Natureza profundamente imbuídas em dogmas cristãos. O facto de a maioria das pessoas não pensar nestas atitudes como sendo cristãs é irrelevante. A nossa sociedade não aceitou nenhum outro conjunto de valores básicos que destronasse o do Cristianismo. Daí que continuaremos a ter um agravamento da crise ecológica até rejeitarmos o axioma cristão de que a Natureza não tem razão para existir senão para servir o homem.

O maior revolucionário espiritual da história ocidental, São Francisco, propôs aquilo que julgava ser uma visão cristã alternativa da Natureza e da relação do homem com ela; tentou substituir a ideia do domínio ilimitado do homem face à criação pela ideia da igualdade de todas as criaturas, incluindo o homem. Falhou. Tanto a ciência actual como a tecnologia actual estão tão tingidas pela arrogância cristã ortodoxa face à Natureza que não se pode esperar o aparecimento de uma solução para a nossa crise ecológica apenas com base nelas. Uma vez que as raízes dos nossos problemas são em tão grande medida religiosas, o remédio também terá de ser essencialmente religioso, quer lhe chamemos isso ou não. Devemos repensar e re-sentir a nossa Natureza e o nosso destino. A percepção profundamente religiosa, embora herética, dos franciscanos primitivos quanto à autonomia espiritual de todas as partes da Natureza pode indicar-nos um caminho. Proponho que São Francisco seja o santo patrono dos ecologistas.

White, Lynn 
1974  "The historical roots of our ecologic crisis [with discussion of St Francis; reprint, 1967]," Ecology and religion in history, (New York :Harper and Row, 1974), [ | RI HOLLIS# ABF0491 /bks]. 

O Regresso da Filosofia



«Em cada momento histórico move-se um pêndulo que rege os acontecimentos, e tanto a sua parte fixa como a móvel constituem uma máquina maravilhosa, que não deixa nem deixará de ser uma máquina que marca o ritmo da mecânica histórica, os latidos de um coração que vive, que acelera e desacelera, que sofre às vezes taquicardias; que um dia nasceu e que acabará por morrer. (…)
Contra este ritmo universal nada podem as nossas disquisições intelectuais. É como é, e a única coisa que podemos fazer é percebê-lo ou não.
Quem não o percebe, não merece regra geral o epíteto de filósofo, pois fica-se pela superfície dos acontecimentos sem se incomodar em verificar as suas causas profundas. A alienação, que perturba a razão e a percepção, deixa-os no aparente paradoxo da existência crendo que o seu tempo – o que eles vivem – é único, que o progresso é constante e linear. Mas a História (…) é cíclica e responde a motores ocultos que se desvelam somente àqueles que neles meditam profundamente

Jorge Angel Livraga[1]


No nosso mundo acelerado, em constante mutação, anestesiado pelo excesso de informação e aletergado pela faceta maiávica, ilusória, da tecnologia transformado em finalidades e não em meios que enriqueçam o Ser Humano, ocorrem uma série de fenómenos, muitas vezes pouco visíveis a o olho nu, mas que merecem uma reflexão aturada de modo a podermos ultrapassar a mediocridade das ideias feitas que alimentam o ar do nosso tempo. Um desses fenómenos, invisível na confusão do nevoeiro da actualidade, mas bem claro para quem tiver a coragem de meditar sem pré-conceitos no processo de mutação da actualidade, é o «Regresso da Filosofia». As formas mentais do velho paradigma já não respondem - nem iludem a resposta – às questões do Homem do século XXI, colocado numa impressionante charneira histórica: as formas religiosas tradicionais estão anquilosadas, a crise política, económica e de valores é bem visível, há uma transição de Era astrológica, Peixes para Aquário, o que solicita novas formas de espiritualidade, e, concomitantemente, finaliza um ciclo de filosofia para dar espaço do que poderemos talvez denominar uma Filosofia Natural de carácter platónico – desenvolveremos este tema mais adiante. Neste tempo de profundas mudanças, emerge a necessidade de verdadeiros filósofos que possam dar uma nova luz sobre a catadupa vertiginosa dos acontecimentos que gera um desconcerto natural para quem não capta os motores profundos que dão origem a esta aceleração.
Alan Minc no seu trabalho A Nova Idade Média, publicada há mais de uma década, assinala como o Ocidente, depois de 1989, não soube encontrar um princípio fundador no período post-comunista. Quer dizer, esgotou-se o tempo e a energia das formas mentais neo-racionalistas de carácter materializante-mecanicista e, sem novos arquétipos a inspirar os centros de poder, entrou-se nos inícios de um novo período medieval, ou seja, num tempo intermédio entre uma civilização que cai por desgaste e perversão de valores e uma nova que surgirá a partir das sementes que, entretanto, se plantarem.
A nosso ver, a História da Humanidade é uma sucessão de civilizações com os seus períodos intermédios entre cada uma delas. Um arquétipo transforma-se numa forma mental colectiva, num Ideal, que de início é captado por um restrito grupo de filósofos. Estes modelam as primeiras manifestações dessa Ideia, surge a fase auroral, uma filosofia dá origem a uma cultura que, com o tempo, se expande tornando-se uma civilização que atingirá o seu apogeu. A partir de certo momento, a Ideia ou alma dessa civilização começa a desencarnar, os humanos começam a desvincular-se dos valores fundadores e essa forma civilizatória entra em decadência até se desmoronar completamente. Este é um processo natural constatável através do estudo do carácter cíclico da História e dos motores profundos que a regem, dando especial enfoque ao ambiente mítico e psicológico de cada época.

O Ciclo da Filosofia Ocidental e a Catástrofe Metafísica do Ocidente

«A catástrofe de um racionalismo exagerado começou com Aristóteles na corporização das ideias e rebentou com Descartes, o qual se apoiou na dúvida e circunscreveu a racionalidade do mundo a leis de sucessão mecânica, excluindo toda a Finalidade Universal, negando os princípios platónicos. (…)
As linhas mestras do pensamento humano diluem-se.»[2]

Jorge Angel Livraga

Estamos hoje no final de um ciclo de aproximadamente três mil anos. Dentro do que a história nos permite conhecer, descortinamos dois factos importantes que marcam os germes da ruptura entre o Homem e a sacralidade da Natureza, ou seja, a visão tradicional da vida. Por um lado, o judaísmo tornou-se uma religião histórica e não mitológica e por outro, paralelamente, a invasão da Hélade pelos dórios marcou uma ruptura com a Grécia tradicional da civilização micénica. Este último facto que desencadeou o ciclo da filosofia ocidental.
Jean-Pierre Vernant não hesitou em afirmar: «A queda do poder micénico, a expansão dos dórios no Peloponeso, de Creta a Rhodes, inauguram uma nova era da civilização grega. Uma distância intransponível estabelece-se, então, entre os homens e os deuses.»[3] O antropólogo Fernand Schwarz corrobora esta afirmação: «A invasão da Hélade pelos dórios, entre os séculos XII e VIII a. C., provocou a desintegração das crenças religiosas primitivas que o universo micénico soubera preservar, mantendo um equilíbrio justo entre os poderes matriciais da Terra e o espírito fecundante do Céu.»[4] Inicia-se um ciclo de mutação profunda na mentalidade ocidental que vai conduzir à perda gradual da compreensão das funções mítica e iniciática na sociedade humana. Neste quadro, nasce a espantosa aventura da filosofia, iniciada na Grécia clássica dos séculos VI eV a. C., mas que contém à nascença o germe desse fenómeno surpreendente que Henry Corbin apelidou de catástrofe metafísica do Ocidente. A razão diferencia-se, separa-se da religião e empenha-se em construir uma visão científico-racional do mundo e da vida. Este ciclo dura dois mil e quinhentos anos, durante os quais, por um efeito de cascata, os sistemas filosóficos racionalistas se vão sucedendo até chegarmos aos famosos positivismos e marxismos que enquadram mitologicamente (o homem não vive sem mitos) a sociedade actual.
A tensão criada entre Platão e Aristóteles é, em nosso entender, da maior importância. O pai da Academia dá prioridade ao Mundo das Ideias, ou seja, este é real, não sendo o mundo sensível mais do que a sombra daquele. O homem, através da educação (Ginástica para o corpo; Música – ciências e artes das musas – para a psykhé; e Dialéctica para o espírito, nous), deve ir-se libertando da caverna do mundo sensível e ascender paulatinamente à beleza dos divinos arquétipos. Esta ascensão é proporcionada pela reminiscência – a lembrança da alma. A saudade como nostalgia do paraíso perdido é platónica. Platão é um filósofo da síntese, enquanto Aristóteles, de início seu discípulo, é um filósofo da análise, sendo verdadeiramente o pai da ciência moderna. O filósofo do Liceu começa a investigar o mundo sensível, não aceita a necessidade da existência per se do Mundo das Ideias e corporiza-as, nascendo deste modo a tensão entre Aristóteles e Platão. O discípulo de Sócrates incorpora a razão e o mithos no seu sistema holístico, enquanto Aristóteles se afasta do mito, dando a primazia à razão. Sabemos que, de Aristóteles a Averroes, a Descartes, aos iluministas, a Auguste Comte, etc., vai uma grande distância em termos de profundidade filosófica. Para chegarmos a essa conclusão, basta-nos ler a Ética a Nicómaco, mas quando o filósofo do Liceu dá preponderância ao estudo da Natureza baseado nas percepções que nos chegam com origem nos cinco sentidos em detrimento da imaginação mítica (ou sem a incluir) e da experiência iniciática, começa a limitar a percepção abrangente do Real. Para o pensamento de índole aristotélica, a imaginação não um o órgão da alma que permite o acesso ao mundo espiritual, como afirmou Giordano Bruno, mas simples fantasia construída a partir das sensações recebidas do mundo exterior. Esta visão do mundo faz com que o homem perca a sua interioridade, não estando consciente da sua necessidade de se alimentar espiritualmente através da reminiscência arquetípica. Aliás, o próprio estudo do mundo sensível, apadrinhado por Aristóteles, demonstra hoje cabalmente que os cinco sentidos não são as únicas portas para a percepção do real. O cientista português, Helder Bértolo, realizou a sua tese de mestrado, na área da biofísica e da física médica, sobre O Sonho e Imagem em Invisuais. Chegou à conclusão de que não existe grande distinção entre os sonhos de um cego de nascença e os de um normovisual, quer dizer, os invisuais congénitos têm os seus sonhos com conteúdos visuais idênticos aos das pessoas com o órgão da visão saudável. Quando um normovisual fecha os olhos emergem as ondas alfa que tem no cérebro, mas se imaginar um objecto estas bloqueiam e aparecem altas frequências. Este facto acontece também nos sonhos dos cegos congénitos, ou seja, processam-se com imagens reais que o sentido da visão nunca conseguiu captar por estar obstruído. Tivemos a oportunidade de apreciar alguns desenhos efectuados por um dos invisuais congénitos que aceitaram colaborar no estudo de Helder Bértolo. Nestes desenhos vêem-se perfeitamente um barco, um gato, uma galinha, um moinho, montanhas, uma nuvem e um Sol com os seus raios. Quanto a nós, este caso só tem uma explicação satisfatória se aceitarmos a existência da imaginação como órgão da alma, noutro plano que não o dos sentidos físicos, e também a existência per se do inconsciente colectivo, onde se encontra toda essa biblioteca de imagens e mitos à qual a imaginação tem acesso.
Platão, iniciado nas escolas de mistérios do Antigo Egipto, incorpora no seu sistema filosófico os grandes pilares da sabedoria tradicional, tal como o reconhece Mircea Eliade: «Poderíamos então dizer que esta ontologia ‘primitiva’ tem uma estrutura platónica, e Platão poderia ser considerado neste caso como o filósofo por excelência da ‘mentalidade primitiva’, isto é, como o pensador que conseguiu valorizar filosoficamente os modos de existência e de comportamento da humanidade arcaica. Claro que a ‘originalidade’ do seu génio filosófico não fica de modo nenhum diminuída; porque o grande mérito de Platão continua a ser o seu esforço em justificar teoricamente essa visão da humanidade arcaica, através dos meios dialécticos que a espiritualidade da sua época lhe podia fornecer.»[5]
A filosofia platónica influenciou bastante o cristianismo nascente, nomeadamente através da Escola Neoplatónica de Alexandria fundada por Amónio Saccas, no século II d. C.. Deste foco luminoso de filosofia espiritual emergiram grande vultos da espiritualidade como Plotino, Jâmblico, Proclo, Hipátia, etc., e inspiraram-se nele alguns dos padres mais cultos da Igreja como Orígenes e Clemente de Alexandria. Fernando Pessoa assevera mesmo: «O cristianismo, cuja base é o neo-platonismo de Alexandria: pode dizer-se sem exagero que, no campo intelectual o fundador do cristianismo foi Platão, assim como no campo social foi S. Paulo, ainda que fosse o mesmo Cristo no campo divino (...)».[6] Mas, no século XIII, segundo o pensamento de Henry Corbin, surge a primeira ruptura que marca a catástrofe metafísica do Ocidente. Gilbert Durand, em franca sintonia com este pensamento, sustenta que foi «o repúdio progressivo pela escolástica peripatética [aristotélica] e averroísta da anamnésia platónica de Escoto Erígena e de Dionísio, o Aeropagita, que marca bem o que Henry Corbin chamou de a catástrofe metafísica do Ocidente».[7]
Na realidade, a escolástica adopta o pensamento aristotélico veiculado por Averroes e separa a filosofia da teologia, colocando esta ao serviço da ciência. A fé divorcia-se da razão, o que é absolutamente oposto à sabedoria tradicional. Os teólogos racionalistas da escolástica separam o conhecimento humano da revelação divina; agrava-se a ruptura entre o sagrado e o profano. Quer isto dizer, em definitivo, que o pensamento humano deixa de ter o direito de especular (tão pouco pode compreender, tem é de ter fé) sobre as grandes questões da espiritualidade, sendo forçado a obedecer coercivamente às directrizes da Igreja. Assim, essa energia mental começa a dirigir-se para as questões do mundo sensível. Poucos séculos depois, surge o cartesianismo, instaurando a dialéctica entre o pensamento humano, inteligente, e a natureza morta, da qual o homem se deve tornar possuidor e mestre. Entretanto Descartes, como crente que era, não deixava de rezar à Virgem Maria.
Vem o iluminismo e com ele a ciência está cada vez mais separada da religião, surgindo depois as doutrinas materialistas do século XIX na sua forma mais redutora. Para os seguidores do positivismo, a humanidade, que surgiu do Deus Acaso, tem vindo a cumprir uma evolução linear. O homem pré-histórico, com os seus totens e tabus, viveu na chamada etapa mágica da humanidade. Seguiu-se um período ainda muito supersticioso mas já um pouco mais racional, a etapa religiosa, com o alvorecer das civilizações da Ásia Menor. Com a Grécia nasce o homem racional, desperto, e a humanidade alcança a importante etapa filosófica, embora o conhecimento seja ainda subjectivo. Finalmente, no auge da evolução humana surge a era científica, ou positiva.
Por outras palavras, a humanidade, numa evolução linear, tinha acedido ao estado teológico de consciência, deste passara ao metafísico e, finalmente, chegara ao estado positivo. Para esta nova religião dessacralizada e materialista, – que tem nos intelectuais racionalistas os seus sacerdotes – a humanidade, graças ao desenvolvimento da ciência, viveria no final do século XX em pleno paraíso na Terra. Lembremo-nos de que para o marxismo – naturalmente inspirado na leitura positivista da realidade – a «religião é o ópio do povo», precisando o homem para ser feliz simplesmente da libertação económica, ou seja, com os problemas de natureza material resolvidos, seria naturalmente feliz. Esta visão positivista da realidade é a forma mental que ainda hoje impera no Ocidente, ao mesmo tempo que as religiões institucionalizadas vivem fossilizadas dentro das suas formas mentais medievais.
É neste contexto que a antropologia do imaginário e a história das religiões podem dar um contributo importante à nova era que se avizinha. Tudo na Natureza nasce, cresce, tem o seu período de maturidade, envelhece e morre. Tanto as civilizações humanas, como as formas religiosas ou os movimentos filosóficos estão integrados na Natureza e não podem fugir às suas leis. Segundo pensamos, as representações do mundo criadas pelas ideologias são formas mentais que vivem na correspondente esfera de vibração mental, fazendo parte da Natureza invisível e tendo o seu lapso de tempo natural consoante a sua energia. Conhecemo-las como a consciência ou alienação mental de cada época (ar do tempo segundo o jornalista José António Saraiva), na qual a esmagadora maioria de seres humanos está mentalmente imersa e prisioneira. Serão estas formas mentais uma criação humana ou serão antes os homens que, entrando em consonância com estas formas de natureza mental, desempenham a função de seus veículos no momento x da espiral do tempo? Eis uma questão filosófica que valerá a pena meditarmos.


O Regresso da Filosofia Natural

«Afirmamos e afirmaremos sempre que o homem que não consegue ver na Natureza, a expressão original, o grande depósito do pensamento humano é intelectualmente um desesperado

Fernando Pessoa


Mas esgotado este ciclo como neo-racionalismo e as formas teoréticas de filosofia, onde o afastamento do pensamento humano à amplitude e leis da Natureza é, para nós, evidente, reemerge o que poderemos denominar como filosofia natural de carácter platónico. Uma atitude de procura do Saber meditando sobre as grandes questões do Homem, da sociedade, da história, da ciência, com o fito de captar a mecânica interna da Natureza e os motores mais profundos dos fenómenos e acontecimentos. O reducionismo do Real à esfera do medível, do visível, do «científico», afastou a filosofia da Realidade. O regresso a uma visão do mundo que inclua as dimensões física, psíquica e espiritual da Natureza, como o fez Henry Corbin[8] e foi aceite por muitos investigadores do movimento da Nova Antropologia, permite um regresso da filosofia natural, ou seja, percepcionarmos que os fenómenos psíquicos, mentais e espirituais, também estão sujeitos a leis naturais e que a verdadeira filosofia é a procura destas leis fundamentais que regem o universo. O regresso da filosofia assenta no novo paradigma que está a nascer permitindo um novo contacto do pensamento humano com a mecânica interna da Natureza. A nosso ver, o grande percursor desta atitude renovada da filosofia foi Jorge Angel Livraga que, na segunda metade do século XX, propôs uma nova cosmovisão, deixou reflexões filosóficas sobre uma miríade de temas e foi um exemplo para os seus discípulos de como a filosofia pode ser transformadora e enriquecer a vida interior dos humanos.
Se no ciclo da filosofia ocidental que agora se esgotou o pensamento aristotélico ganhou a supremacia, no regresso da filosofia o pensamento de Platão ganha uma renovada importância.
Platão relaciona claramente nos seu diálogos o filósofo com o iniciado nos mistérios, aquele que acede directamente à visão do mundo divino. Quer dizer, o filósofo não é somente o amante da sabedoria (filo-sophos) mas também o sábio do Amor, aquele que, pelo Amor, vai fazendo a ascese da sua consciência desde os fenómenos físico, passando pelos psíquicos até chegar aos espirituais, no mundo de nous, da mente divina. Este Eros filosófico, como enfatiza Giovanni Reale no seu trabalho sobre o Banquete de Platão, é de suprema importância e marca a filosofia como a grande ponte entre a realidade deste mundo e as vivências espirituais. A filosofia é o estado intermédio que nos permite rasgar os véus da ilusão deste mundo e abrir portas à sabedoria do mundo celeste, origem natural da alma. A filosofia não é uma meta, é um caminho, o fio de Ariana que nos poderá libertar do Labirinto da Vida. Deste modo, a filosofia está para o Saber Iniciático, como a razão para a Intuição, sem intuições de nous que ilumine a inteligência dificilmente poderemos ganhar contacto com a Realidade. Para activar este contacto com a Realidade, os filósofos antigos propunham uma coerência entre o pensamento, a palavra e a acção. A acção recta, o imperativo categórico de Kant, a coerência pensamento-acção aliada à capacidade de reflexão cria um ambiente próprio à emergência de intuições.

A Filosofia e o Novo Paradigma

(...) a identificação dos limites, das insuficiências estruturais do paradigma científico moderno é o resultado do grande avanço no conhecimento que ele propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda. (...) Os avanços da microfísica, da astrofísica e da biologia das últimas décadas restituíram à natureza as propriedades de que a ciência moderna a expropriara. O aprofundamento do conhecimento conduzido segundo a matriz materialista veio a desembocar num conhecimento idealista. (...) começa hoje a reconhecer-se uma dimensão psíquica da natureza “a mente mais ampla” de que fala Bateson, da qual a mente humana é apenas uma parte, uma mente imanente ao sistema global social e à ecologia planetária a que alguns chamam Deus. Geoffrey Chew postula a existência de consciência na natureza como um elemento necessário à autoconsistência desta última e, se assim for, as futuras teorias terão de incluir o estudo da consciência humana. Convergentemente, assiste-se a um renovado interesse pelo “inconsciente colectivo”, imanente à humanidade no seu todo, de Jung[9]

Boaventura de Sousa Santos
Oração de Sapiência proferida na abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra, em 1985

Reiteramos. O regresso da filosofia está intimamente relacionado com o reatar do contacto do Homem com a Natureza no seu sentido amplo, do pensamento humano com a dimensão mental que é a raiz de todo o fenómeno.
Nas últimas décadas esse contacto tem acontecido amiúde em certos âmbitos da ciência.
Em primeiro lugar, destacamos os membros dos Encontros Eranos, fóruns multidisciplinares onde pontificaram o psicólogo Jung, o orientalista Henry Corbin, o físico Wolfgang Pauli, o helenista Karl Kereni, o historiador das religiões Mircea Eliade, o antropólogo Gilbert Durand, entre outros. Todos eles tinham uma atitude filosófica na procura de uma visão holistica do Homem e do Universo em contraponto com a desagregação da especialização do conhecimento originada pela ciência moderna.
Dos seus trabalhos emerge a consciência da realidade mítica, de como os mitos no mundo mental estruturam a consciência humana.
Fernand Schwarz seguindo a linha de pensamento de pensadores como Mircea Eliade e Gilbert Durand, refere a importância da representação do mundo para cada ser humano. Quer dizer, tem gravado na sua alma a sua visão do mundo que lhe dá a escala de valores e o enfoca no contacto com o universo. Como se pode transmutar e renovar esta visão do mundo, claramente através do exercício da filosofia.
Um outro âmbito muitos cientistas se tornaram filósofos foi a área da física quântica. Quando os resultados das experiências são desconcertantes para o velho paradigma e a ciência não permite uma verificação para além dos instrumentos físicos, então surge o pensamento filosófico. Os factos são científicos, a interpretação dos mesmos é filosófica. Vejamos algumas das reflexões do físico quântico Lothar Schäfer: «Da mesma maneira que os átomos mortos [inorgânicos] formam organismos vivos e as moléculas estúpidas formam cérebros inteligentes, as entidades metafísicas formam a realidade física.»
«Nas experiências que testam a realidade quântica abriu-se uma janela para um diferente tipo de realidade, talvez para o domínio das ideias de Platão, ou para uma Realidade Divina, onde o mental pode existir sem um substrato material.»
«No fundamento da realidade, encontramos relações numéricas – princípios não-materiais – sobre os quais se baseia a ordem do mundo. A base do mundo material é não-material.»
«Quando [um electrão] é observado, é sempre uma partícula e o padrão de interferência entra em ruptura. Quando não é observado, as ondas de interferência evoluem imediatamente e dispersam-se por ampla regiões do espaço.»
«Heisenberg acreditava que a matéria sem forma não é totalmente real. Acreditava que o tecido em si, informe e indefinido, não é parte da realidade, mas tem o potencial, potentia, de se tornar realidade ao ganhar forma. A forma confere realidade à matéria.»
Assinalemos que na visão platónica existe uma hierarquia entre as ideias, por exemplo: existem as ideias puras, como o arquétipo do belo, e existem as ideias que «dão realidade» aos objectos. Uma cadeira existe porque tem o suporte mental da ideia-cadeira. Estas últimas «ideias» (eidos em grego) podem também ser denominadas «formas», o que, aliás, acontece nas traduções anglo-saxónicas de eidos. Voltando a citar Schäfer: «Ao nível das partículas elementares, os estados de ser com a aparência de ideia tornam-se em estados com aparência de matéria; as tendências Heisenberg são tendências com aparência de pensamento, e os resultados dos eventos Heisenberg, com aparência de matéria. A realização assemelha-se à materialização.»[10]
Este grupo de físicos-filósofos que decidiram promover o divórcio da ciência com a filosofia materialista não tem tido a vida fácil no âmbito da investigação científica. Disso temos o testemunho pessoal de Lothar Schäfer e Basarab Nicolescu. Rupert Shelldrake já enfatizou essa realidade e quando Fritoj Capra, autor de O Tao da Física, se queixou desse facto a Heisenberg, este respondeu-lhe sorrindo: «A mim também me acusam constantemente de me dedicar demasiado à filosofia. (…) Você e eu somos outro tipo de físicos.»
Nesta área da física-filosofia parce-nos importante destacar a visão transdisciplinar holistica proposta por Basarab Nicolescu e as relações de Ervin Lazlo entre a ciência e o mundo akashico da filosofia hindu.

«A física moderna optou, definitivamente, por Platão. Com efeito, as mais pequenas unidades de matéria não são objectos físicos no sentido vulgar do termo, mas formas, estruturas, ‘Ideias’ – na acepção platónica da expressão – de que não é possível falar sem ambiguidades a não ser em termos matemáticos
Heisenberg

«A filosofia natural dos gregos, voltada para a materialidade, combinada com a razão aristotélica, obteve uma vitória tardia, porém significativa sobre Platão.
Em toda a vitória há sempre o germe de uma derrota futura. Mais recentemente têm-se multiplicado os sinais indicativos de uma mudança de ponto de vista[11]
Carl Gustav Jung


A Importância da Filosofia num mundo desconcertante

«A resposta conveniente ao que é a pós-modernidade não é fácil nem simples. (...) algo se pôs em movimento dentro do pensamento contemporâneo, algo que talvez nem seuqer seja um pensamento, mas um sentimento, uma vontade, uma nostalgia, um presságio. Pelo facto de não constituir uma evolução das ainda chamadas “posições de vanguarda”, não responde a uma continuidade mecânica, embora seja inexoravelmente lógica. É uma ruptura com todas elas, com vocação de profundidade. À cultura horizontal contrapõe-se a cultura vertical, em profundidade vertical.
É evidentemente filosófica, já que busca a verdade mais além do que (…) definimos como “Os Mitos do Século XX”. Não se inclina para a esquerda nem para a direita, mas, surgindo, das profundidades do inconsciente colectivo e – por que não? – do subconsciente individual, irrompe quase violentamente por cima da superficialidade do pensamento político, social, económico, artístico e científico das últimas décadas[12]

Jorge Angel Livraga



Voltando às ideias iniciais deste breve trabalho, vivemos hoje num mundo de charneira entre velhos paradigmas que se desmoronam e novos em formação. As formas religiosas já não respondem às inquietações interiores do Homem do século XXI e a ciência medievaliza-se em tribos de académicos, muitas vezes mais preocupados com o seu estatuto do que com a procura empenhada da verdade. Nestes tempos intermédios surge a filosofia como via de auto-descoberta e de realização humana, propiciadora de um processo de individuação que gera a verdadeira individualidade, ou seja, permite o reencontro íntimo com o sentido da vida, o encontro com o «centro». No nosso tempo, esta foi a proposta pioneira de Jorge Angel Livraga ao criar em 1957 a Nova Acrópole, uma Escola de Filosofia à maneira clássica que fomenta uma nova cosmovisão - termo que Livraga utilizava recorrentemente -, um processo de transmutação interior baseado na compreensão filosófica e consequente prática coerente que se reflecte num novo estilo de vida mais espiritualmente mais ecológico.
Décadas mais tarde, fundamentalmente nos E. U. A., a filosofia prática e aconselhamento filosófico tomaria nova força em ruptura com as filosofias teoréticas da modernidade. Esta emergência actual do carácter prático da filosofia foi um fenómeno imprevisível que continua a expandir-se notavelmente, refira-se os best-sellers de Lou Marinoff, como o caso de Mais Platão, Menos Prozac. Mas a muitos destes filósofos práticos, talvez demasiados psicologistas, falta-lhes o sentido da visão do mundo já constatada pela antropologia do imaginário, quer dizer, não basta resolver uma questão particular do ser humano, é necessária uma nova cosmovisão que o reintegre no universo, só assim reencontrará o sentido da vida e o seu «centro», que mais não é que a sua alma profunda. Para se chegar aí é necessária uma filosofia, simultaneamente contemplativa e prática, que provoque a reminiscência platónica, isto é, a recordação da sabedoria latente mas profundezas do ser humano, o seu «património antigo».
Na área da psicologia também há psicólogos que começam a recorrer à filosofia, tal é o caso de Jonathan Haidt que trabalha no âmbito da psicologia positiva. Mas também aqui se revela a falta de um estudo profundo da história das mentalidades e das correntes filosóficas. No entanto, algo está a mexer e a verdade é que, a nosso ver, a psicologia não pode ser separada da filosofia, assim como o psicólogo para exercer com propriedade a sua missão deverá ter uma atitude filosófica.
Noutra perspectiva, a filosofia como faculdade para reflectir sobre os acontecimentos e escudo para não ser invadido pelos formas mentais negativas do ar do tempo, adquire hoje em dia uma importância vital dada a pressão violenta da sociedade de consumo, mormente dos mass media. Por outro lado, os encantos e ciladas do materialismo espiritual são hodiernamente mais do que muitos e é necessário um grande esforço filosófico para manter a lucidez e não mesclar os interesses da alma, ou Ego Espiritual, do egoísmo da personalidade, o ego inferior.
Finalizamos referindo a importância para um novo paradigma filosófico (natural) do estudo profundo e imparcial da história. Uma filosofia com impulso espiritual gera uma nova cultura, uma cultura consistente dará origem a uma nova civilização que surgirá depois de uma idade média. Mas esta nova cultura que reate um grupo humano com a seiva espiritual que vem do fundo dos tempos, com as raízes da árvore evolutiva da humanidade, tem de partir de um conhecimento vivo da história, de uma filosofia da história que procure o melhor do passado, do atemporal e arquetípico que se manifestou no passado, e o projecte no futuro. Do mesmo modo que o Homem é, por natureza, o microcosmos que liga a Terra ao Céu, que está entre o animal e o divino, também encontra o seu «centro» colectivo ao reatar o contacto com as raízes históricas (e pré-históricas) e projectar no futuro as seiva que delas emerge.
A filosofia natural transmuta o homem-animal-racional em ser espiritual integrado nos cosmos. A filosofia da história transmutará o niilismo e superstição da nossa época na consciência do devir histórico, no reencontro com o telos, a finalidade dharmica da Humanidade.
Saudemos o regresso da filosofia e de uma esperança renovada num mundo novo e melhor.

Paulo Alexandre Loução
Instituto Internacional Hermes
Coordenador da Nova Acrópole de Lisboa


[1] Jorge Angel Livraga, «O Racismo que vem aí», in revista Nova Acrópole, nº 46. 1990, pp. 4-5. Artigo escrito em Agosto de 1990. Sublinhado nosso.
[2] Jorge Angel Livraga, «O Neo-Racionalismo», in Os Grandes Mitos do Século XX, edições Nova Acrópole, Porto, 1995, p. 34.  Sublinhado nosso.
[3] Jean-Pierre Vernant, Origens do Pensamento Grego, Teorema, Lisboa, 1987.
[4] Fernand Schwarz, A Tradição e as Vias de Conhecimento, OINAB, S. Paulo, 1993, p. 12; como introdução ao tema da catástrofe metafísica do Ocidente aconselhamos a leitura desta obra.
[5] Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno, Ed. 70, Lisboa, 1998, p. 49.
[6] Agenda do Centenário de Fernando Pessoa, org. de Pedro Teixeira da Mota, Ed. Manuel Lencastre, 1988.
[7] Gilbert Durand, La foi du cordonnier, Ed. Denoël, p. 23.
[8] Vide a sua obra Corpo Espiritual, Terra Celeste.
[9] Boaventura de Sousa Santos, Um Discurso Sobre as Ciências, Afrontamento, Porto, 1987. Sublinhado nosso.
[10] Lothar Schäfer, «Em Busca da Realidade Divina – A ciência como fonte de inspiração», Ésquilo, Lisboa, 2005.
[11] C. G. Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Colectivo, Ed. Vozes, Petrópolis, 2000, p. 88.
[12] Jorge Angel Livraga, «O que é a Pós-Modernidade», in revista Nova Acrópole, Lisboa.