Publico aqui, traduzido, o artigo histórico do sacerdote e historiador Lynn White, escrito há quase cinquenta anos, merece reflexão. O problema ecológico instiga-nos a uma profundo introspecção quanto à nossa relação com a Natureza, sabendo que dela somos parte integrante e não exógenos. Há que reencontrar o espírito de solidariedade cósmica do homem arcaico, fomentar uma relação espiritual com a Natureza.
Ter uma conversa
com Aldous Huxley era frequentemente sinónimo de assistirmos a um monólogo
inesquecível. Cerca de um ano antes de ter morrido, acontecimetno lamentável, discorria
sobre o seu tópico favorito: a forma nada natural de o Homem tratar a Natureza
e os infelizes resultados que daí decorrem. Para ilustrar o seu ponto de vista,
contou como, no Verão anterior, havia regressado a um pequeno vale em
Inglaterra onde passara muitos e felizes meses quando era criança. Outrora o
vale fora formado por maravilhosas clareiras de erva; agora, estava repleto de
moitas selvagens e feias porque os coelhos que anteriormente mantinham o
crescimento do mato controlado haviam sucumbido em grande número a uma doença,
a mixomatose, que foi introduzida propositadamente pelos agricultores locais
para reduzir a destruição das colheitas provocada pelos coelhos. Tendo algo em mim de Filisteu,
não pude ficar calado durante mais tempo, mesmo no interesse da grande
retórica. Interrompi para salientar o facto de o próprio coelho ter sido
trazido como animal doméstico para a Inglaterra em 1176, supostamente para
melhorar a dieta proteica da classe camponesa.
Todas as formas
de vida modificam os meios onde se encontram. O exemplo mais espectacular e
benigno é indubitavelmente o pólipo de coral. Servindo os seus próprios
interesses, criou um vasto mundo subaquático favorável a milhares de outras
espécies de animais e plantas. O homem, desde que se tornou numa espécie numerosa,
afectou de forma considerável o seu meio ambiente. A hipótese de que um dos
seus métodos de caça, aquele em que usava o fogo para fazer sair os animais do
meio da vegetação, deu origem às grandes pradarias do mundo e ajudou a
exterminar, de grande parte do globo, os enormes mamíferos do Pleistoceno é
plausível, se é que não foi já provada. Há pelo menos seis milénios que as
margens norte do Nilo têm sido um artefacto humano em vez da selva pantanosa
africana que a Natureza, não fosse o homem, pretendia que fosse. A Barragem
Assuão, que submerge uma área de 5.000 milhas quadradas [aproximadamente 12.900 quilómetros
quadrados], é a mais recente fase de um longo processo. Em muitas regiões, as
técnicas de construção em terraço ou de irrigação, o pastoreio excessivo, o
abate de florestas pelos Romanos para construir navios para lutar contra os
Cartagineses ou pelos Cruzados para resolver os problemas logísticos das suas
expedições, alteraram profundamente algumas ecologias. A observação de que a
paisagem francesa se dividia em dois tipos básicos, os campos abertos do norte
e o arvoredo das zonas sul e oeste, inspirou Marc Bloch a empreender o seu
estudo clássico sobre os métodos agrícolas medievais. De forma muito pouco
intencional, as mudanças dos costumes humanos afectam frequentemente a natureza
não-humana. Note-se, por exemplo, que o advento do automóvel eliminou os
grandes bandos de pardais que outrora se alimentavam dos excrementos de cavalo
que poluíam as ruas.
A história da
mudança ecológica é ainda tão rudimentar que sabemos muito pouco sobre o que
realmente aconteceu, ou quais foram os seus resultados. A extinção dos auroques
europeus numa data tão tardia como 1627 parece ter sido um simples caso de caça
excessiva. Em assuntos mais complicados, é frequentemente impossível encontrar
informações concretas e fiáveis. Os Frísios e os Holandeses têm estado a
impedir o avanço do Mar do Norte ao longo de, pelo menos, mil anos, e o
processo está a culminar nos nossos dias
com a conquista ao mar do golfo Zuider Zee. Que espécies, se
é que algumas, de animais, pássaros, peixes, vida costeira ou de plantas
morreram neste processo? No combate épico que travam com Neptuno, será que os
Neerlandeses negligenciaram os valores ecológicos a ponto de afectar a qualidade
da vida humana nos Países Baixos? Tanto quanto sei, estas perguntas nunca foram
feitas, muito menos respondidas.
As pessoas têm,
pois, sido frequentemente um elemento dinâmico no seu próprio meio ambiente,
mas, no estado actual da aprendizagem histórica, é habitual não sabermos
exactamente quando, onde ou com que efeitos se produziram as mudanças induzidas
pelo homem. Contudo, ao entrarmos no último terço do século XX, a preocupação
com os efeitos ecológicos adversos está a crescer desmesuradamente. A ciência
natural, concebida como o esforço por compreender a natureza das coisas,
floresceu em várias eras e junto de vários povos. Da mesma forma, deu-se a
acumulação de antigas aptidões tecnológicas, que umas vezes cresceram
rapidamente, outras lentamente. Mas foi apenas há cerca de quatro gerações que
a Europa Ocidental e a América do Norte conseguiram arranjar um casamento entre
a ciência e a tecnologia; a união entre as abordagens teórica e empírica ao
nosso meio ambiente natural. A emergência da prática generalizada do credo de
Francis Bacon, segundo o qual o conhecimento científico significa poder
tecnológico sobre a Natureza, praticamente não pode ser datada antes de 1850,
excepção feita às indústrias químicas, onde esta já se efectuava no século XVIII.
A sua aceitação como um padrão normal de acção pode marcar o maior
acontecimento da história humana desde a invenção da agricultura, e
possivelmente também da história terrestre não-humana.
A nova situação
forçou, quase de imediato, a cristalização do mais recente conceito de
ecologia; de facto, a palavra ecologia apareceu pela primeira vez na língua
inglesa em 1873. Hoje, menos de um século mais tarde, a força do impacto da
nossa raça no meio ambiente cresceu tanto que mudou na essência. Quando foram
disparados os primeiros canhões, no início do século XIV, estes afectaram a
ecologia ao enviarem trabalhadores para as florestas e montanhas no intuito de
procurarem mais potassa, enxofre, minério de ferro e carvão vegetal, advindo
daí alguma erosão e desflorestação. As bombas de hidrogénio estão num patamar
totalmente diferente: uma guerra travada com elas pode alterar a genética de
toda a vida existente neste planeta. Por volta de 1285, Londres já enfrentava o
problema do smog, resultante da
queima de linhite, mas a actual combustão de combustíveis fósseis que o homem faz
ameaça mudar a química da atmosfera do globo como um todo, com consequências
que só agora começamos a vislumbrar. O certo é que, com a explosão
populacional, o carcinoma do urbanismo não planeado, o que agora são depósitos
geológicos de detritos e lixo, nenhuma outra criatura para além do homem
conseguiu estragar e contaminar o seu ninho tão rapidamente.
Já foram feitos
muitos apelos à acção, mas as propostas específicas que surgiram, por muito
meritórias que sejam individualmente, parecem ser demasiado parciais,
paliativas, negativas: banir a bomba, deitar abaixo os quadros para afixar
cartazes, dar aos Hindus contraceptivos e dizer-lhes que comam as vacas
sagradas. A solução mais simples para qualquer mudança suspeita é,
evidentemente, acabar com ela; ou melhor ainda, remeter para um passado
romantizado: fazer com que as horríveis bombas de gasolina se pareçam com uma
das cabanas de Anne Hathaway ou (no Faroeste) com bares de cidades-fantasma. A
mentalidade “área selvagem” defende invariavelmente, seja em San Gimignano ou
em High Sierra, o regresso estático a uma ecologia que existia antes de o
primeiro lenço de papel ter sido deitado fora. Mas, nem o atavismo nem a
petrificação conseguirão resolver a crise ecológica dos nossos tempos.
O que fazer? Ainda
ninguém sabe. Se não pensarmos sobre o que é fundamental, as medidas
específicas que tomamos poderão produzir novos efeitos nocivos; efeitos ainda
mais graves do que aqueles que deveriam remediar.
Para começar,
devíamos tentar clarificar a nossa forma de pensar olhando, com alguma
profundidade histórica, para os pressupostos que estão subjacentes à tecnologia
e ciência modernas. A ciência era tradicionalmente aristocrática, especulativa,
intelectual no seu propósito; a tecnologia era da classe baixa, empírica e
orientada para a acção. A rápida fusão de ambas, em meados do século XIX, está
seguramente relacionada com as revoluções democráticas contemporâneas, embora
ligeiramente anteriores, que, para reduzir as barreiras sociais, tiveram
tendência a defender uma unidade funcional entre o cérebro e a mão. A nossa
crise ecológica é o produto de uma cultura democrática emergente e totalmente
nova. A questão que se coloca é saber se um mundo democratizado consegue
sobreviver às suas próprias implicações. Presumivelmente não consegue, a não
ser que repensemos os nossos axiomas.
As
Tradições Ocidentais da Tecnologia e da Ciência
Há uma coisa tão
evidente que chega mesmo a parecer estúpido verbalizá-la: tanto a tecnologia
moderna como a ciência moderna são distintamente ocidentais. A nossa tecnologia
absorveu elementos de todas as partes do mundo, nomeadamente da China, porém,
um pouco por todo o lado, seja no Japão ou na Nigéria, a tecnologia de sucesso
é ocidental. A nossa ciência foi herdeira de todas as ciências do passado,
talvez em especial do trabalho dos grandes cientistas islâmicos da Idade Média,
que tão frequentemente suplantavam os antigos Gregos em aptidão e perspicácia: al-Razi
na medicina, por exemplo; ou ibn-al-Haytham na óptica; ou Omar Khayyam na
matemática. De facto, não foram poucas as obras de génios como estes cujos
originais árabes parecem ter desaparecido, sobrevivendo apenas as traduções
medievais em latim que ajudaram a lançar as bases dos progressos ocidentais
posteriores. Hoje em dia, no mundo inteiro, toda a ciência importante é ocidental,
tanto em estilo como em método, seja qual for a pigmentação ou a língua dos
cientistas.
Um segundo par
de factos é bem menos conhecido porque resulta de uma aprendizagem história
bastante recente. A liderança ocidental, tanto em termos de tecnologia como de
ciência, é muito mais antiga do que a chamada Revolução Industrial do século
XVIII. Estes termos estão de facto fora de moda e obscurecem a verdadeira
natureza daquilo que tentam descrever -- fases significativas em dois longos e
separados desenvolvimentos. No ano 1000 d.C., no máximo -- talvez mesmo, embora
de forma não muito convincente, 200 anos antes desta data -- o Ocidente começou
a utilizar o poder da água noutros processos industriais para além da moagem de
cereais. A isto seguiu-se, em finais do século XII, o domínio e o aproveitamento
do poder do vento. Foi com passos modestos, mas também com uma notável
consistência de estilo, que o Ocidente expandiu rapidamente as suas técnicas
para desenvolver maquinaria eléctrica, aparelhos que não requeriam tanto
trabalho manual e a automação. Aqueles que duvidam devem contemplar um dos mais
monumentais feitos da história da automação: o relógio mecânico de pesos, que
apareceu em dois formatos no início do século XIV. Não em termos da arte do
artífice mas em termos da capacidade tecnológica básica, o Ocidente latino dos
finais da Idade Média suplantava largamente as culturas bizantina e islâmica,
caracterizadas pela sua complexidade, sofisticação e magnificência estética. Em
1444, um grande eclesiástico grego, Bessarion, que fora para Itália, escreveu
uma carta a um príncipe na Grécia. Ele estava surpreendido com a superioridade
dos navios, das armas, dos têxteis e do vidro ocidentais. Mas, acima de tudo,
ele estava espantadíssimo com o espectáculo proporcionado pelas rodas movidas a
água que serravam madeiras e accionavam os foles dos altos-fornos. É mais do
que evidente que ele nunca tinha visto nada que se assemelhasse no Próximo
Oriente.
Em finais do
século XV, a superioridade tecnológica da Europa era de tal ordem que as
pequenas nações que a constituíam, mutuamente hostis, podiam espraiar-se sobre
resto do mundo, conquistando, saqueando e colonizando. O símbolo desta
superioridade tecnológica é o facto de Portugal, um dos estados mais fracos do
Ocidente, ter sido capaz de se tornar, e de se manter durante um século, dono e
senhor das Índias orientais. E não devemos esquecer-nos que a tecnologia de
Vasco da Gama e de Albuquerque foi criada a partir do empirismo puro, indo
buscar muito pouca inspiração ou apoio à ciência.
Na compreensão
vernaculista do presente, a ciência moderna começou supostamente em 1543, quando
Copérnico e Vesalius publicaram as suas grandes obras. Contudo, os seus feitos
não ficam diminuídos se salientarmos que estruturas como a Fabrica e De revolutionibus
não apareceram da noite para o dia. De facto, a distintiva tradição ocidental
científica começou no final do século XI com um colossal movimento de tradução
para latim das obras científicas árabes e gregas. Alguns livros notáveis --
como por exemplo, Theophrastus --
escaparam ao ávido e novo apetite ocidental pela ciência, mas não passaram mais
de 200 anos para que, efectivamente, todo o acervo de ciência grega e muçulmana
ficasse disponível em latim e fosse sofregamente lido e criticado nas novas
universidades europeias. Da crítica adveio nova observação, especulação e uma
crescente desconfiança em relação àqueles que em tempos antigos eram a
autoridade. Em finais do século XIII, a Europa apoderara-se da liderança
científica global, tendo-a retirado das débeis mãos do Islão. Seria tão absurdo
negar a profunda originalidade de Newton, Galileu ou Copérnico como negar a
originalidade de cientistas escolásticos como Buridan ou Oresme, cujas obras no
século XIV serviram de base aos primeiros. Antes do século XI, a ciência era
praticamente inexistente no Ocidente latino, mesmo nos tempos romanos. Do
século XI para a frente, o sector científico da cultura ocidental tem vindo a crescer
a um ritmo constante.
Parece que não
conseguimos compreender a natureza ou o impacto presente na ecologia dos nossos
dois movimentos, tecnológico e científico, desde que estes tiveram início,
adquiriram o seu carácter e conseguiram alcançar o domínio mundial na Idade
Média, sem antes analisarmos os pressupostos e progressos medievais
fundamentais.
A
Visão Medieval do Homem e da Natureza
Até há pouco
tempo atrás, a agricultura foi sempre a principal ocupação das sociedades,
mesmo das mais "avançadas"; daí que qualquer alteração nos métodos da
lavoura tenha grande importância. Os primeiros arados, puxados por pares de
bois, não conseguiam normalmente revolver a terra, limitavam-se a remexer a
superfície. Assim, tornava-se necessário fazer um cruzamento de aragens e os
campos tendiam a ser quadrados. Esta técnica funcionava bem nos solos
relativamente leves e nos climas semi-áridos do Próximo Oriente e do
Mediterrâneo, mas era inapropriada para os climas húmidos e para os solos
frequentemente viscosos do norte da Europa. Contudo, perto do fim do século VII
d.C., no seguimento de inícios um tanto obscuros, alguns camponeses do norte
começaram a usar uma forma totalmente nova de arado, equipado com uma lâmina
vertical que abria facilmente a linha do sulco, uma parte horizontal que
cortava o solo por baixo e uma aiveca para revirar a terra. A fricção deste
arado no solo era tão grande que, normalmente, eram necessários oito bois em
vez de dois. A forma como atacava o solo era de tal maneira violenta que deixou
de ser necessário o cruzamento de aragens, havendo tendência para os campos se
alongarem em comprimento e ficarem com o aspecto de longas faixas de terreno
arado.
Nos dias do
arado de cunha simples, os campos estavam geralmente distribuídos em unidades
capazes de sustentar uma única família. A agricultura de subsistência era a
norma. Mas não havia camponês que possuísse oito bois: para usar o novo arado,
muito mais eficiente, os camponeses juntavam os seus bois para formar grandes
equipas de aragem, recebendo originalmente (ao que tudo indica) faixas aradas
na proporção da sua contribuição. Assim, a distribuição da terra deixou de se
basear nas necessidades de uma família, passando antes a basear-se na
capacidade de uma máquina que lavrasse a terra. A relação do homem com o solo
foi profundamente alterada: inicialmente o homem fizera parte da Natureza;
agora era o explorador da Natureza. Em mais nenhuma parte do mundo se verificou
por parte dos agricultores o desenvolvimento de qualquer outro implemento
agrícola análogo. Será uma coincidência que tecnologia moderna, com a sua
abordagem impiedosa face à Natureza, tenha sido em grande medida produzida
pelos descendentes destes camponeses do norte da Europa?
Esta mesma
atitude aproveitadora encontra-se bem patente nos calendários ilustrados
ocidentais pouco antes de 830 d.C. Em calendários anteriores, os meses eram
representados por personificações passivas. Os novos calendários francos, que pautaram
o estilo para a Idade Média, eram muito diferentes: mostravam homens a coagir o
mundo que os rodeava -- arando, fazendo colheitas, cortando árvores, matando
porcos. O homem e a Natureza eram duas coisas distintas, e o homem dominava.
Estas novidades
parecem estar em harmonia com alguns padrões intelectuais mais vastos. A forma
como as pessoas tratam a ecologia depende da forma como percepcionam a sua
relação com as coisas que as rodeiam. A ecologia humana está profundamente
condicionada pelas nossas crenças face à Natureza e ao destino -- ou seja, pela
religião. Do ponto de vista dos ocidentais, este facto é muito evidente,
digamos, na Índia ou no Ceilão. Mas é igualmente verdadeiro quando aplicado a
nós e aos nossos antepassados medievais.
A vitória do
Cristianismo sobre o paganismo foi a maior revolução psíquica na história da
nossa cultura. Hoje, tornou-se moda dizer que, para o bem ou para o mal,
vivemos na “era pós-Cristã”. É certo que as nossas formas de pensamento e a
nossa linguagem deixaram em grande medida de ser cristãs, mas, do meu ponto de
vista, a substância mantém-se muitas vezes, e de forma surpreendente, muito
próxima da do passado. Por exemplo, os nossos hábitos quotidianos são dominados
por uma fé implícita no progresso contínuo, que era algo desconhecido tanto
para a Antiguidade greco-romana como para o Oriente. Esta fé está bem
enraizada, e é indefensável para além da teologia judaico-cristã. O facto de os
comunistas partilharem essa fé vem simplesmente ajudar a reforçar aquilo que
pode ser demonstrado com base em muitos outros fundamentos: que o Marxismo, tal
como o Islão, é uma heresia judaico-cristã. Hoje em dia, continuamos em grande
medida a viver, tal como o fazemos há cerca de 1700 anos, num contexto de
axiomas cristãos.
O que disse o
Cristianismo às pessoas sobre as relações destas com meio ambiente? Enquanto
muitas das mitologias do mundo apresentam histórias da criação, a mitologia
greco-romana foi singularmente incoerente a este respeito. Tal como
Aristóteles, os intelectuais do Ocidente antigo negaram que o mundo visível
tivesse um começo. De facto, a ideia de um começo era impossível no
enquadramento da sua noção cíclica do tempo. Numa perspectiva diametralmente
oposta, o Cristianismo herdou do Judaísmo não apenas um conceito de tempo
não-repetitivo e linear, mas também uma impressionante história sobre a
criação. Em fases graduais, um Deus afectuoso e todo-poderoso criou a luz e a
escuridão, os corpos celestes, a terra e todas as suas plantas, animais,
pássaros e peixes. Por fim, Deus criou Adão e, como resultado de uma reflexão
posterior, Eva, para evitar que o homem se sentisse sozinho. O homem deu nome a
todos os animais, estabelecendo assim o seu domínio sobre eles. Deus planeou
tudo isto expressamente para benefício do homem e para que este dominasse:
nenhum item da criação física tinha outro propósito senão servir os propósitos
do homem. E, embora o corpo do homem seja feito de barro, ele não é
simplesmente parte da Natureza: ele é feito à imagem de Deus.
O Cristianismo, especialmente na sua forma
ocidental, é a religião mais antropocêntrica que o mundo alguma vez teve
ocasião de testemunhar. Numa data tão remota como o século II, tanto
Tertualiano como o santo Irineu de Lião insistiam que Deus, quando moldou Adão,
estava a prenunciar a imagem do Cristo incarnado, o Segundo Adão. Em grande
medida, o homem partilha com Deus a transcendência da Natureza. O Cristianismo,
contrastando totalmente com o Paganismo antigo e com as religiões asiáticas
(excepto, talvez, o Zoroastrismo), não se limitou a estabelecer um dualismo
entre o homem e a Natureza, insistiu ainda que é a vontade de Deus que o homem
se aproveite da Natureza para atingir os seus próprios fins.
Ao nível das
pessoas comuns, o resultado disto foi muito interessante. Na Antiguidade, cada
árvore, cada nascente, cada ribeiro, cada colina tinha o seu próprio genius loci, o seu espírito guardião. Os
homens tinham acesso a estes espíritos, mas estes últimos eram muito diferentes
dos homens: centauros, faunos e sereias mostram bem a sua ambivalência. Antes
de alguém cortar uma árvore, de exercer a actividade mineira numa montanha ou
de represar um riacho, era importante aplacar o espírito responsável por aquela
situação, e mantê-lo aplacado. O Cristianismo, ao destruir o animismo pagão,
fez com que fosse possível tirar proveito da Natureza numa atmosfera de
indiferença para com os sentimentos dos objectos naturais.
Diz-se
frequentemente que a Igreja substituiu o animismo pelo culto dos santos. É
verdade; mas o culto dos santos é funcionalmente bastante diferente do
animismo. O santo não se encontra nos objectos naturais; pode ter altares
especiais, mas a sua cidadania está no céu. Para além disso, um santo é
totalmente um homem; pode ser abordado em termos humanos. A
juntar aos santos, o Cristianismo também tinha, claro, os anjos e demónios
herdados do Judaísmo, e talvez noutro grau, do Zoroastrismo. Mas estes eram tão
móveis como os próprios santos. Os espíritos dos objectos naturais, que outrora
haviam protegido a Natureza do homem, evaporaram-se. O monopólio efectivo do
homem sobre o espírito neste mundo estava confirmado, e as velhas inibições
face à exploração abusiva da natureza ruíram.
Quando se fala
em termos tão generalizados, é necessário introduzir uma nota de aviso. O
Cristianismo é uma fé complexa, e as suas consequências diferem consoante os
diferentes contextos. Aquilo que referi pode aplicar-se perfeitamente ao
Ocidente medieval, onde a tecnologia registou efectivamente avanços
espectaculares. Mas, o Oriente grego, um reino altamente civilizado com igual
devoção cristã, parece não ter produzido qualquer inovação tecnológica de
relevo após o final do século VII, altura em que o fogo grego foi inventado. A
chave deste contraste pode talvez ser encontrada nas diferenças de tonalidade
que os estudantes de teologia comparativa encontram entre as Igrejas grega e
latina no que se refere à piedade e ao pensamento. Os Gregos acreditavam que o
pecado era uma cegueira intelectual e que a salvação se encontrava na
iluminação, na ortodoxia -- ou seja, no pensamento esclarecido. Por outro lado,
os Latinos consideravam que o pecado era um mal moral e que a salvação se
encontrava numa conduta correcta. A teologia oriental tem sido intelectualista.
A teologia ocidental tem sido voluntarista. O santo grego contempla; o santo
ocidental age. As implicações do Cristianismo face à conquista da Natureza
emergiriam muito mais facilmente na atmosfera ocidental.
O dogma cristão
da criação, que pode ser encontrado na parte inicial de todos os credos, tem ainda
outro significado para a nossa compreensão da crise ecológica actual. Por meio
de uma revelação, Deus deu ao homem a Bíblia, o Livro da Escritura. Mas, uma
vez que Deus havia feito a Natureza, esta também teria de evidenciar a
mentalidade divina. O estudo religioso da Natureza com o intuito de se
conseguir uma melhor compreensão de Deus ficou conhecido como teologia natural.
Nos primórdios da Igreja, e sempre no Oriente grego, a Natureza era concebida
em primeira instância como um sistema simbólico através do qual Deus falava ao
homem: a formiga é um sermão para os preguiçosos; a ascensão das chamas é
símbolo da aspiração da alma. A visão da Natureza era essencialmente artística,
não científica. Enquanto Bizâncio preservava e copiava grandes quantidades de
textos científicos gregos antigos, era muito pouco provável que a ciência, tal
como a concebemos, conseguisse florescer em semelhante ambiente.
Contudo, no
Ocidente latino, no início do século XIII, a teologia natural seguia um rumo
completamente diferente. Deixava de ser a descodificação dos símbolos físicos
da comunicação divina com o homem para se tornar no esforço em compreender a
mente de Deus através da descoberta de como funcionava a sua criação. O
arco-íris já não era apenas um símbolo de esperança enviado por Noé depois do
Dilúvio: Robert Grosseteste, o Frade Roger Bacon e Teodorico de Friburgo
produziram obras assustadoramente sofisticadas sobre a óptica do arco-íris, mas
fizeram-no em prol da compreensão religiosa. Do século XIII em diante, até
chegarmos a Leitnitz e Newton, inclusive, todos os grandes cientistas
explicaram as suas motivações em termos religiosos. De
facto, Galileu, se não tivesse sido um perito tão grande para um mero teólogo
amador, teria com certeza arranjado muito menos complicações para si: os
profissionais levaram a mal a sua intrusão. E, ao que tudo indica, Newton
considerava-se mais um teólogo do que um cientista. Só em finais do século
XVIII é que a hipótese de Deus se tornou desnecessária para muitos cientistas.
Para o
historiador, torna-se muitas vezes difícil julgar os homens quando estes explicam
porque estão a fazer aquilo que querem fazer, estejam eles a apresentar razões
verdadeiras ou razões meramente aceitáveis do ponto de vista cultural. A
coerência com que os cientistas disseram, durante os longos séculos de formação
da ciência ocidental, que a tarefa e a recompensa do cientista era “pensar os
pensamentos de Deus depois dele”, leva-nos a acreditar que esta era mesmo a sua
real motivação. Sendo assim, o molde da ciência ocidental moderna tem uma
matriz de teologia cristã. E o que lhe deu ímpeto foi o dinamismo da devoção
religiosa moldado pelo dogma judaico-cristão da criação.
Uma
Visão Cristã Alternativa
Tudo indica que
nos encaminhamos para conclusões algo desagradáveis para muitos cristãos. Uma
vez que as palavras ciência e tecnologia são palavras abençoadas no nosso
vocabulário contemporâneo, há quem possa estar contente, de um ponto de vista
histórico, com as noções de que, primeiro, a ciência moderna é uma extrapolação
da teologia natural, e segundo, de que a tecnologia moderna pode ser explicada,
pelo menos em parte, como uma concretização ocidental e voluntarista do dogma
cristão da transcendência do homem face à Natureza, e do seu domínio sobre
esta. Mas, como agora reconhecemos, há pouco mais de um século, a ciência e a
tecnologia -- até então actividades bastante separadas -- juntaram-se para dar
poderes à humanidade que, a julgar por muitos dos efeitos ecológicos, estão
fora de controlo. Sendo esse o caso, o Cristianismo carrega um fardo muito
grande em termos de culpa.
Pessoalmente,
duvido que os desastrosos efeitos nocivos ecológicos possam ser evitados
através da simples aplicação de mais ciência e mais tecnologia aos nossos
problemas. A nossa ciência e a nossa tecnologia já não se enquadram nas
atitudes cristãs face à relação do homem com a Natureza, atitudes essas que são
defendidas não só pelos cristãos e neo-cristãos mas também por aqueles que
carinhosamente se consideram pós-cristãos. Não obstante Copérnico, todo o
cosmos gira em torno do nosso pequeno globo. Não obstante Darwin, nós não
somos, no fundo, parte do processo natural; somos superiores à Natureza, temos
para com ela um sentimento de desprezo, queremos usá-la para satisfazer os
nossos caprichos, quaisquer que sejam. O recém-eleito Governador da Califórnia,
um homem do clero tal como eu, mas muito menos preocupado, falou em prol da
tradição cristão quando disse (como se alega) "depois de vermos uma sequóia,
já vimos todas”. Para um cristão, uma árvore não pode ser mais do que um facto
físico. Todo o conceito do bosque sagrado não tem lugar no Cristianismo nem no
sistema de valores ocidental. Ao longo de quase dois milénios, os missionários
cristãos têm vindo a deitar abaixo bosques sagrados, porque estes, ao assumirem
espírito na Natureza, são idólatras.
Aquilo que
fazemos quanto à ecologia depende das nossas ideias sobre a relação
homem-natureza. Mais ciência e mais tecnologia não nos vão fazer sair da
presente crise ecológica até encontrarmos uma nova religião, ou até repensarmos
a velha. Os beatniks, que são
basicamente os revolucionários dos nossos dias, mostram ter um bom instinto na
sua afinidade com o Budismo Zen, que concebe uma relação homem-natureza muito
aproximada, quase uma imagem reflectida, da visão cristã. Contudo, o Budismo
Zen está tão profundamente condicionado pela história asiática como o
Cristianismo está pela experiência ocidental, e tenho dúvidas quanto à sua
viabilidade entre nós.
Talvez
devêssemos ponderar o maior radical na história cristã desde Cristo: São
Francisco de Assis. O principal milagre de São Francisco foi o facto de não ter
morrido queimado, como aconteceu a muitos dos seus seguidores de esquerda. Ele
era tão claramente herético que um General da Ordem franciscana, São
Boaventura, um grande e perspicaz cristão, tentou suprimir as primeiras
ocorrências de franciscanismo. A chave para compreendermos São Francisco é a sua
crença na virtude da humildade -- não apenas em relação ao indivíduo mas em
relação ao homem enquanto espécie. São Francisco tentou depor o homem da sua
monarquia face à criação e estabeleceu uma democracia para todas as criaturas
de Deus. Com ele, a formiga deixa de ser apenas uma homília para os preguiçosos,
as chamas deixam de ser um sinal revelador da confiança da alma ir ao encontro
da união com Deus; agora, são a Irmã Formiga e a Irmã Chama, que louvam o
Criador da maneira que podem, tal como o Irmão Homem também o louva de sua
maneira.
Comentadores de
épocas posteriores afirmaram que São Francisco pregava aos pássaros como
censura para com os homens que não queriam ouvir. A história não reza assim:
ele rogou aos passarinhos que louvassem Deus e, num êxtase espiritual, eles
bateram as asas e chilrearam de contentamento. Há muito que as lendas de
santos, especialmente de santos irlandeses, contavam as interacções destes com
os animais, mas acredito que o fizessem tendo sempre como objectivo mostrar o
domínio humano sobre as criaturas. Com São Francisco é diferente. A terra em redor de Gubbio, nos
Apeninos, era assolada por um temível lobo. Diz a lenda que São Francisco falou
com o lobo e fê-lo ver o seu erro. O lobo arrependeu-se, morreu no odor da
santidade e foi enterrado em chão sagrado.
Aquilo a que Sir
Steven Ruciman chama "a doutrina franciscana da alma animal" foi
rapidamente extinto. Muito possivelmente, inspirava-se em parte, consciente ou
inconscientemente, na crença da reincarnação dos heréticos cátaros, que na
altura abundavam na Itália e no sul da França e que, presumivelmente, a tinham
ido buscar originalmente à Índia. É significativo que nesse preciso momento,
cerca do ano 1200, também se tenham encontrado vestígios de metempsicose no
Judaísmo ocidental, na Cabala provençal. Mas São Francisco não estava ligada
nem à transmigração das almas nem ao panteísmo. A sua visão da Natureza e do
homem assentava numa espécie única de pan-psiquismo de todas as coisas animadas
e inanimadas, concebido para a glorificação do seu transcendente Criador, que,
num derradeiro gesto de humildade cósmica, foi carne, esteve indefeso deitado
numa manjedoura e morreu pendurado num cadafalso.
Não estou a
sugerir que muitos dos Americanos contemporâneos que estão preocupados com a
nossa crise ecológica sejam capazes ou estejam dispostos a aconselharem-se com
lobos nem a exortarem os pássaros. Contudo, a actual e crescente perturbação do
meio ambiente global é o produto de uma tecnologia e ciência dinâmicas que
estavam a aparecer no mundo ocidental medieval e contra as quais São Francisco
se rebelava de forma tão original. O seu crescimento não pode ser entendido, em
termos históricos, separadamente das atitudes distintivas face à Natureza
profundamente imbuídas em
dogmas cristãos. O facto de a maioria das pessoas não pensar
nestas atitudes como sendo cristãs é irrelevante. A nossa sociedade não aceitou
nenhum outro conjunto de valores básicos que destronasse o do Cristianismo. Daí
que continuaremos a ter um agravamento da crise ecológica até rejeitarmos o
axioma cristão de que a Natureza não tem razão para existir senão para servir o
homem.
O maior
revolucionário espiritual da história ocidental, São Francisco, propôs aquilo
que julgava ser uma visão cristã alternativa da Natureza e da relação do homem
com ela; tentou substituir a ideia do domínio ilimitado do homem face à criação
pela ideia da igualdade de todas as criaturas, incluindo o homem. Falhou. Tanto
a ciência actual como a tecnologia actual estão tão tingidas pela arrogância
cristã ortodoxa face à Natureza que não se pode esperar o aparecimento de uma
solução para a nossa crise ecológica apenas com base nelas. Uma vez que as
raízes dos nossos problemas são em tão grande medida religiosas, o remédio
também terá de ser essencialmente religioso, quer lhe chamemos isso ou não.
Devemos repensar e re-sentir a nossa Natureza e o nosso destino. A percepção
profundamente religiosa, embora herética, dos franciscanos primitivos quanto à
autonomia espiritual de todas as partes da Natureza pode indicar-nos um caminho.
Proponho que São Francisco seja o santo patrono dos ecologistas.
White, Lynn
1974
"The historical roots of our ecologic crisis [with discussion of St
Francis; reprint, 1967]," Ecology and religion in history, (New York
:Harper and Row, 1974), [ | RI HOLLIS# ABF0491 /bks].